sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Noite de Natal

Márcio Calafiori


— Mamãe, como o Papai Noel vai entrar aqui? A nossa casa não tem chaminé!

— Ah, ele sempre dá um jeito. Não te preocupes...

No quarto morno e compacto de certeza, o guri desperta:

Na janela, a noite cintilante...

(Pôxa, pelo jeito o Papai Noel já estivera ali

e mais uma vez não conseguiu flagrá-lo...

Mas é verdade:

se o visse entrando pela chaminé

— a chaminé invisível — teria muito medo).

Saudade

Márcio Calafiori


Quando minha mãe ia embora,

o meu choro explodia,

vindo de uma essência incontrolável.


Depois, tudo me distraia:

os animais pastando,

o espinho que percorria a carne,

a casinha do joão-de-barro,

a laranja-de-umbigo,

a bosta das vacas,

os chapéus-de-cobra,

a casa das abelhas,

o cemitério,

a estação do trem,

a sanga,

o ônibus a caminho de Jaguarão,

as tardes mornas em que eu pulava a janela

para furar os bolos de Maria Beiró.


Eu corria atrás de seu Belinho,

implorando para que não matasse o porco

O porco era meu amigo!

Mas seu Belinho metia a faca:

o porco gritava me dizendo adeus.


Às vezes, a chuva me impedia de sair

ou então só quando a geada derretesse.

No alto do cerro morava uma velha...

Negra Rosa botava a chaleira para o mate

Vovó batia as claras para o merengue

Tia Mimosa conversava com o rádio

O gaúcho passava a cavalo...



À noite, na saleta do casarão,

Eu ouvia a voz da minha mãe:

vinha como de um balde atirado à cacimba...

Na parede, o lampião iluminava os retratos

Homens e mulheres de olhares antigos,

Todos mortos!

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O congresso

Márcio Calafiori

"A educação precisa de professoras excitadas... De professoras excitadas?... Estou ficando completamente maluquinha!... Isso é um devaneio... Um devaneio do meu coração!... Estou tão feliz!..."

A vice-diretora tenta estacionar o carro nas imediações do clube onde se realiza o congresso que pretende discutir os novos rumos para o ensino básico. Ela encontra uma vaga. Mas precisa fazer uma manobra eficiente para caber ali.

"...Assim... Isso.... Isso... Viu?... Quem não sabe estacionar um carro? Quem nunca bateu um carro?... Quem nunca teve aborrecimentos por causa de um carro?... Ele!... Ele nunca teve dissabores por causa de um carro, pois não sabe dirigir! Quando ele me disse isso, não acreditei! Eu falei assim, meio perplexa: 'Tu não sabes dirigir?'. E ele me respondeu simplesmente: 'Não, não sei! Nunca me interessei por carros!'. Primeiro, pensei: 'Como pode isso?'. Agora quando entro no carro a primeira coisa que me vem à cabeça é que ele não sabe dirigir... Às vezes fico pensando... Se eu não soubesse dirigir, não teria feito essa cirurgia dolorosa de hérnia de disco que me incomoda até hoje, pois não teria sofrido aquele acidente... E não teria essa cicatriz ridícula no pescoço por causa da cirurgia!... Ele disse que ama a minha cicatriz!... Que quer beijá-la, passar a língua nela até derretê-la... Que lindo!... Mas quando ele me falou isso, não resisti e perguntei se a língua dele fazia milagres.




"Aí ele quis saber por quê. Aí então eu disse que tinha hemorróidas. Eu podia ter dito qualquer outra coisa, mas às vezes ele fica romântico demais... Preciso de atenção, mas um cara romântico demais às vezes me cansa um pouco... Mas só um pouco, pois eu penso tanto nele!... "Alguém teria de começar a conversa sobre sexo, pois já estávamos conversando no MSN há dois meses e ele só ficava dizendo que me adorava... E mais nada... Uma noite, enquanto a gente conversava, fui fazer xixi. Quando voltei, comentei que estava sentindo frio, que estava toda gelada. Nem dei tempo pra ele pensar no que dizer, fui logo dizendo: 'Estou assim porque peguei frio na xexeca'... Depois disso, ele sempre pede pra me ver nua. No começo tive medo... Quando fiquei nua fiz isso sabendo que ele poderia pensar que eu já fizera isso antes... Aliás, ele chegou a insinuar isso, pois perguntou sobre a minha câmera... Eu disse que tinha comprado a câmera recentemente... Fiz questão de dizer também que nunca mais iria ficar nua, pois não queria que o nosso reencontro, depois de trinta anos, se resumisse a isso...
"Mas um dia desses não resisti... Quando já íamos sair do MSN eu disse pra ele não ir embora ainda, pois eu tinha uma surpresa... Eram quase duas da manhã. Fui ao banheiro, tirei a roupa, fiquei só de calcinha e soutiã, coloquei o roupão por cima e voltei para o computador. Estava frio demais, mas eu queria ficar nua de novo... Será que ele quer me ver assim só pela web ou quer me ver de verdade, ao vivo?... Ah, sei lá..."

É sexta-feira e a vice-diretora chega ao congresso bem na hora do coffee break, o último antes do encerramento do evento. Os participantes conversam em grupos, animados. A expressão coffee break a irrita...

"Um congresso sobre os rumos da educação, que se pretenda sério, deveria abolir essa expressão, 'coffe break'. Inclusive porque estamos todos aqui em defesa de crianças que muitas vezes nem tomam café em casa, pois dependem da escola pra tudo!... Daqui a pouco vou falar e queria tanto que ele me ouvisse... Queria tanto que ele prestasse atenção em mim... Esse congresso é muito importante! As crianças estão cada vez mais desorientadas e os adultos... cada vez mais irresponsáveis! Essa é a verdade! O meu discurso não terá essa questão da cultura audiovisual e tecnológica/digital versus a cultura letrada! A verdade é que os adultos ficaram irresponsáveis, ora!... E superficiais... O repertório de um adulto hoje equivale ao de um adolescente... É isso!.... Acho que estamos retornando à Idade-Média...
Como eu queria que ele estivesse aqui!... Quando eu tinha 12 anos, e ele fazia poesia para mim, ele sempre me perguntava se eu tinha entendido o que ele havia escrito. Na época, eu queria dizer pra ele que eu só tinha 12 anos e, às vezes, não entendia nada do que ele escrevia... Mas eu achava lindo... De manhã, quando eu ia pra escola, corria pra ler o que ele tinha me deixado na caixa de correspondência... Ele pensava mesmo em mim?... Me adorava assim, daquele jeito?... Ah, como eu queria que ele estivesse aqui!... Eu ia localizá-lo na platéia e ler a minha intervenção olhando pra ele. E então ele iria entender o quanto tudo o que me escreveu teve influência em mim... Pois nunca esqueci aquilo, de acordar de manhã cedo e encontrar algo escrito pra mim, só pra mim, só pra mim... Só meu...

"A nossa história é tão bonita!... Mas acho tão triste também... Esses dias chorei tanto... Quando escrevi pra ele nem sabia se iria mesmo reencontrá-lo. Mas quando li a resposta dele ao meu e-mail tive a certeza de que era ele mesmo, pois só ele escreveria assim: 'Quando li a tua mensagem quase caí da cadeira, pois o meu coração recebeu um impacto sonoro e retumbante!'..."

Agora, os participantes do congresso começam a voltar para o salão de conferências.
No palco, a mesa é composta pelo presidente do evento, pela secretária-executiva e pela vice-diretora, que fará o discurso como convidada. Ela observa a platéia. Quantos ali estariam vivendo uma história de amor? Não as histórias adormecidas de amor, mas uma história de amor como a dela, que conseguira reencontrar o primeiro namorado, depois de trinta anos, e se apaixonar de novo?...

“'Não quero que tu penses que eu sou uma safada, mas tu me ensinaste a beijar de língua, lembra?'”. Eu disse isso pra ele... E ele se lembrava de tudo... Depois de trinta anos!... Eu adorei isso... Adorei... Como ele podia se lembrar de tanta coisa que eu mesma nem me lembrava mais?... Será que o nosso reencontro tem mesmo a ver com o destino? Não sei se acredito em destino, mas todas as minhas amigas falam em destino! Bem, seja o que for, é a vida!... Mas até agora, depois de quase cinco meses, ele ainda não veio me ver. Mas disse que virá... Eu sinto que ele está dizendo a verdade, que ele virá, que ele me ama de verdade... Eu sinto isso...
Ele disse que não pode vir assim, de uma hora pra outra... Mas ele precisa vir logoooooooooo!... No fundo, as minhas amigas pensam que sou ingênua. A Alice já até me disse: 'Não deixem pra se encontrar quando vocês estiverem velhos e sem vontade alguma'. Sábia Alice..."

Na platéia, o clima do coffe break ainda não se dissipou. O presidente anuncia que fará as considerações finais sobre o congresso depois da intervenção da vice-diretora, representante das escolas municipais:
— Com a palavra, a professora...
— Boa-tarde... O tema da minha análise sobre educação é muito inspirada nas idéias e conclusões de Neil Postman... Num ensaio de sua autoria: O fim da educação — Redefinindo o valor da escola...
Coloca os óculos de leitura e, olhando para o público, pega o discurso. Pede desculpas, mas terá de lê-lo. E começa: “Fecho os olhos pra não ver passar o tempo/Sinto falta de você”...

Tenta se recompor:

— Por favor, me desculpem... Peguei um outro papel por engano. Estava junto com o discurso... Troquei de óculos ontem... Deve ser por isso... Estou me acostumando ainda... Na verdade, comecei a ler uma letra de música... Gozado, nem percebi... Estava na bolsa... É uma música que o Roberto canta... Adoro essa música... É por causa de um ex-namorado, que eu não via há trinta anos, e agora estamos prestes a nos reencontrar...
— Acho que todos vão concordar comigo — que a senhora leia a letra dessa música até o fim — diz o presidente do Congresso. — Por favor...
— Vocês querem mesmo que eu leia?
— Sim, por favor...
Ao concluir a leitura e ser muito aplaudida, a vice-diretora agradece e diz:
— A exposição correta é essa... — De acordo com Neil Postman...

Para Adriana

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

No Ritz

Márcio Calafiori

O encontro no hotel fora combinado às nove. Já passava das dez. O atraso começou a exasperá-lo, a deixá-lo em dúvida. Tinha certeza de ter dito Ritz, mas se ela, por engano, entendera Rex? Foi à recepção:
— Este hotel é mesmo o Ritz?
— Como assim, cavalheiro?
— Em Porto Alegre não existe outro Hotel Ritz?
— Pode ficar tranquilo: este é o Hotel Ritz, o tradicional Ritz!
Meses antes, encontrara na caixa de correspondência uma mensagem: “Oi, bom-dia! Morei em Brasília quando adolescente, onde conheci uma pessoa com o seu nome. Ao procurá-lo, encontrei-o. Será que você foi o meu primeiro namorado? Por favor, me responda. Obrigada!”. Ele respondeu: “Quando li essa mensagem quase caí da cadeira, pois o meu coração recebeu um impacto sonoro e retumbante! Sim, sou eu mesmo. Lembro de que eu tinha 19 anos e você 11".
Não existem mais hotéis como o Ritz: os tapetes vinho, os quadros de caça à raposa, as poltronas e os sofás revestidos de couro marrom escuro, o bar silencioso com a iluminação verde, o elevador manual e os hospedes que entram e saem dizendo apenas o necessário. Os homens se sentam no saguão, folheiam um pouco a Zero Hora e pedem licença antes de acender o charuto. As mulheres remetem a lençóis alvíssimos.
O funcionário da recepção era o mesmo senhor calvo, atarracado e de nariz chato, como um lutador de boxe, a quem já interpelara.
— Por favor...
— Um momento...
O homem foi ao escritório e voltou fumando um charuto:
— Espero que não se incomode...
— Não se preocupe...
— Pois não!... Em que posso servi-lo?...
— Fiquei de encontrar aqui uma mulher que não vejo há trinta anos, mas acho que ela não vem mais...
— Ela tem celular?
— Tem!
— E por que o senhor não liga?
— Só dá caixa postal...
— Então vamos tentar de novo. Qual é o número?
O charuto soltava uma fumaça azulada.
— É, está dando caixa postal... — confirmou o homem.
— Combinamos às nove, mas agora... Acho que ela mudou de ideia. Só pode ser isso!
— Não!
— Como o senhor sabe?
— Existem poucas profissões no mundo propícias ao conhecimento quase íntimo do ser humano. O de recepcionista de hotel é uma delas. Quando cheguei aqui me surpreendia muito. Às vezes, ainda me surpreendo... O senhor não é o primeiro a marcar um encontro aqui, no Ritz.
— É?...
— A mulher que o senhor está esperando virá!
— Mas o senhor não a conhece!
— Então me diga o senhor mesmo. Como ela é?
A fumaça azul e cinza do charuto subia, formando um céu compacto.
— Ah, ela é adorável... É espontânea!...
— Não precisa dizer mais nada. Vá ao bar e peça um conhaque e espere-a calmamente. As mulheres adoram fazer surpresas.
— O hotel vende charutos?
— Vende, sim!
— Pois o senhor merece um. Ponha na minha conta!

No bar, ele preferiu o balcão. Mirou o conhaque contra a luz verde... Desde março, quando recebera a mensagem, passou a amá-la minuciosamente pela câmera. Adorava quando ela ria e quando ficava séria; adorava quando ela prendia os cabelos na nuca, como se estivesse vindo para a cama; adorava o que ela dizia. Por exemplo... “Parei de fumar não por causa da saúde, mas porque gosto de sentir os narizes me cheirando. O cigarro estava apagando a minha fragrância!”.
Pediu mais um conhaque e, ao mirá-lo contra a luz verde, viu-a através do tom esmeralda e ouro:
— Desculpa o atraso — ela disse.
— Atraso?... Sabe há quanto tempo estou te esperando?...
— Que horas são?
— É 1h15.
— Pois então?
— Pois então o quê?...
— 1h15 foi a hora em que te mandei o e-mail em março, perguntando se você era você mesmo. Eu quis chegar exatamente à mesma hora...

Para Adriana

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Palavras

Márcio Calafiori

Meu pai costuma dizer palavras que ninguém diz. Uma delas é inapetente. Ouvi-a pela primeira um dia na hora do almoço. Foi quando minha mãe ordenou que eu não saísse da mesa sem antes comer tudo.
— Se ele está inapetente, não o obrigue a comer! — disse meu pai.
— Ele precisa se alimentar!
— O alimento só faz bem quando apetece.
— Nunca ouvi falar disso. Caso contrário, não obrigariam os doentes a comer — ela insistiu.
Aí então o meu pai encerrou a conversa, dizendo a ela:
— Abstenha-se!
E logo em seguida, dirigindo-se a mim:
— Pode se retirar da mesa. Mas não te ponhas qual um corcel fogoso!

Gosto de ler em voz alta os comentários que ele escreve em meu caderno da escola quando a professora propõe o debate de algum tema em sala de aula. Certa vez o tema proposto foi: “Devemos ou não dar esmola?”.
Levei-lhe a questão e meu pai então ditou-me o seguinte texto como resposta: “O óbolo humilha quem recebe e avilta o caráter de quem dá”.
Li isso na classe em voz alta, orgulhoso.

Ontem eu estava no banheiro e minha tia, em cuja casa estou passando as férias, bateu na porta:
— Vais demorar muito?
— Não, tia, tô acabando de defecar!
— O quê?...
— Tô acabando de defecar!...
Quando saí do banheiro, ela me disse:
— Enquanto estiveres aqui em casa fala como gente, tá?

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

46.


Márcio Calafiori

Comprou o apartamento financiado e agora briga na Justiça com o banco por causa das prestações, superiores ao reajuste do salário de militar reformado. Enquanto a mulher cozinha, ele bebe o vinho tinto de garrafão. De repente:
— Já sei!... Vou pesquisar uma substância que me deixe como morto. Aí então tu apresentas o atestado de óbito ao banco e quita-se a dívida. Depois eu ressuscito, levanto do túmulo!...
A mulher:
— Gostei do plano... Menos da parte em que tu ressuscitas.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

5.

Márcio Calafiori

No ônibus ele senta ao lado da moça:
— Com licença...
— Pois não...
— Sabe?... Faz três anos e 11 dias que a minha mulher morreu. Estou indo ao cemitério pra conversar com ela. Vou lá todos os dias. Sabe?... Fico com pena dos outros mortos. Eles não têm ninguém pra conversar com eles.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

3.

Márcio Calafiori

Já está mais do que na hora de requerer a aposentadoria. Ou então solicitar que o transfiram do necrotério para outro setor. Não agüenta mais. Agora há pouco, por exemplo, estava lendo o jornal e um dos mortos soltou um peido que parecia uma bomba. Que susto!

segunda-feira, 28 de julho de 2008

As surpresas do amor

Márcio Calafiori

Quem sabe aquele ali?... Mas parece tão triste!... Aquele outro manca um pouco... Provavelmente por causa de algum calo velho, teimoso, recalcitrante.
Imagina-se já entediada com a previsão do tempo:
— “Quando o meu calo dá essas ferroadas é chuva na certa!”
Aquele de gravata branca tem cara de pão-duro... E por isso deve sofrer dos gases... Este aqui é o mais bonito do baile, mas está acompanhado da loira falsa!... Oh, meu Deus, como a vida é breve!...
Súbito, um senhor se aproxima:
— Me dá o prazer dessa dança? Adoro essa música do Abba.
Mas pelo amor de Deus! Que cara é esse?... E que música é essa do Abba?...
Não pôde deixar de reparar que ele guarda um pente Flamengo no bolso da camisa. Isso a irrita um pouco.
No salão, ele diz:
— Quase não tive coragem de convidá-la para dançar. Mas não resisti. Tu és a mulher mais linda que eu já vi. Gosto dos teus olhos negros e luminosos.
— É mesmo?... Obrigada!... O senhor também é muito simpático. E elegante, também. Isso é saudável na nossa idade... Está sempre se penteando, não?
— Ah, o pente?... Não sei sair de casa sem ele. É um velho hábito. Mas se isso a incomoda, posso guardá-lo no bolso de trás da calça!
— Ah, deixa assim mesmo... Não tem importância...
— És tão linda que tenho a impressão de que se eu fechar os olhos ao abri-los não vou mais te ver...


Para Adriana

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Volte sempre

Márcio Calafiori

Sábado passado levei a última punhalada do Gonzaga, talvez o bairro de Santos que mais tenha se transformado nos últimos anos. Foi assim. Depois de prestigiar o lançamento do livro de um amigo resolvi beber um pouco mais. Isso mesmo. Que se dane o médico, pensei. Dirigi-me então a uma churrascaria. De bar e de bebida entendo um pouco. Portanto, posso garantir: o chope ali era fora de série. A começar pela tulipa, de vidro bem fino. Depois, a espuma cremosa. A bebida chegava transbordando sobre o balcão. Um ritual soberbo.
Acomodei-me e, perscrutando a reforma da casa, que ainda não tinha visto, pedi um chope. E depois outro. Estranho. Alguma coisa não funcionava. Seria o sabor da bebida? Pedi mais um. Súbito, mirei a bolacha de papelão que amparava a tulipa e deparei uma marca, uma dessas que o bebedor exigente não admite. Para certificar-me do que acabara de ler era mesmo verdade, chamei o garçom e o interpelei. “Por favor, que chope é esse?”. “Ah, o nosso agora é o da...”. E confirmou a marca. Então era isso! O piso, os azulejos, as banquetas com estofado novo, quem sabe até mesmo os espelhos reluzentes. A custa do quê? Da troca da marca do chope, da bebida sagrada que por décadas a fio ajudou a produzir ali um fenômeno que só com muito trabalho, empenho e orgulho um comerciante consegue: a tradição!
Diz a lenda que Tom Jobim freqüentava uma churrascaria no Rio de Janeiro que servia um chope excelente, mas que não era a sua marca preferida. No entanto, a casa fazia questão de ir buscar a marca de que o compositor gostava no bar ao lado. Em Santos, pelo menos no Gonzaga, não dá para pedir ao garçom para ir pegar o chope no bar ao lado. Dois dos estabelecimentos que marcaram época no bairro, e que sobrevivem até hoje, mandaram a tradição às favas. Como se sabe, a tradição é parte essencial do enredo de uma cidade. Numa dessas casas, o sanduíche de filé era um monumento. O local foi reformulado, o sanduíche diminuiu de tamanho e o chope, agora de outra marca, tem gosto de remédio. Ou pelo menos tinha, desde a última vez em que ali pisei.
No último sábado, enquanto cogitava esses quesitos preocupantes para um bebedor, mas que, enfim, também dizem algo a respeito de como se dissipam a tradição e a glória de uma cidade, a casa foi enchendo. Exatamente como nos velhos tempos em que a paisagem noturna do Gonzaga era estimulada também pelo movimento da cinelândia e de outras atrações que faziam o seu coração pulsar.
Quando cheguei à churrascaria, só havia um casal. Agora, a casa estava lotada. A pedido dos garçons, alguns clientes até mesmo trocavam de lugar, para os que chegavam pudessem se acomodar ao longo do balcão. O público ali era formado por homens e mulheres na faixa etária de 30 a 70 anos. Ao meu lado, sentou-se um casal muito jovem. Atrás de mim, mais gente esperava a vez.
Refleti: se um local assim consegue reunir gente de idades distintas isso se deve justamente à tradição. Daqui a pouco chegariam outros clientes e a fila então alcançaria a rua. Tudo como há mais de 45 anos. Menos o chope, o indício preocupante e real de que nada mais é sagrado. Pedi a conta. Solícito e gentil, o garçom disse: “Muito obrigado e apareça mais, pois o senhor sumiu. Volte sempre!”. Agradeci, mas não volto mais.

Publicado no jornal Boqueirão em 21 de junho de 2008.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Mimi, o Metalúrgico

Márcio Calafiori

Em 1973, Mimi, o Metalúrgico, de Lina Wertmuller, foi retirado às pressas de cartaz em todo o território nacional. No domingo à noite, na Cinelândia, eu podia ter visto qualquer outro filme, mas calhou de ser Mimi. Foi uma escolha aleatória. Na segunda-feira, o professor de História do Ginásio Estadual do Gonzaga comentou a proibição. Não entendi bem, mas levantei a mão, pedindo permissão para falar:
— Vi esse filme ontem!
— Não acredito!...
— Vi Mimi, sim! Ontem à noite, na sessão das oito.
Ele me convidou então para contar à classe as minhas impressões sobre a obra.
— Ver Mimi foi a maior moleza! — comecei dizendo. — O porteiro do Cine Roxy nem desconfiou da minha carteirinha falsificada!
O professor me interrompeu e referiu-se ao conteúdo político do filme. Respondi:
— Político?... Mimi não tem nada de político! É comédia pura! Um dos filmes mais engraçados que já vi na vida! O senhor precisava ver a cara do Mimi, principalmente quando ele tenta acertar a mulher dele com uma faca, porque ela o traiu com um cara. Que cena! Que cena!...
Paciente, o professor propôs:
— Vamos ver a questão por outro lado... Você acha engraçado alguém trair e ser traído? Será que não existe aí uma simbologia política?
— É porque o senhor não viu o filme! É só comédia. Tem uma hora em que o Mimi leva uma gorda imensa pra cama e o bundão dela enche toda a tela do cinema!
Mimi!... De repente, o herói da classe — em guarda contra o professor de História.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Meu querido Golias

Márcio Calafiori

Na minha cidade não havia TV. Ou melhor: todo mundo tinha um aparelho na sala, mas a imagem só chegava de vez em quando, duas ou três vezes por mês. Portanto, a nossa diversão era mesmo o cinema.
Em 1967, quando Rio Grande, enfim, começou a receber regularmente a transmissão de TV, a Record nos apresentou um personagem absolutamente engraçado, digno de rivalizar com Jerry Lewis — Ronald Golias. Para nós, guris, não existia diversão melhor que a Família Trapo. Golias era o nosso novo herói.
Quem era mais engraçado? Ele ou comediante americano? Na sala de aula só um achava que o mais divertido era o “Gerry Levis”. Esse colega tinha os seus argumentos, mas para espicaçá-lo botávamos a mão embaixo do sovaco esquerdo e, pressionando-o, fazíamos um barulho parecido com um pum:
Pernachia pra ti, ó... pernachia!
O nosso pernachia era uma mistura do desaforado Bronco, personagem do Golias na Família Trapo, com o Pepino, o personagem de Otelo Zeloni, chefe da família. Por qualquer motivo, a sala de aula virava um coro de pernachias. Na classe, havia também o concurso de quem conseguia fazer a imitação mais legal do Golias. Para imitá-lo, era preciso encompridar o queixo. Isso porque, além do sentimento, o segredo do humor de Golias está concentrado no queixo.
Certa vez passei na rua Augusta, em São Paulo. Lembrei então que o humorista gostava muito de um sapateiro que existira ali. Consta que quando soube que a loja seria fechada para sempre, ele encomendou ao artesão cem pares do mesmo sapato. Genial.
Depois de anos de afastamento, Golias voltou à TV. Sempre que ao trocar de canal eu o flagrava em algum programa, parava para assisti-lo um pouco. E dizia para os meus botões: “Ele nunca mudou. O meu querido Golias continua o mesmo.”

Ronald Golias morreu em 27 de setembro de 2005 de infecção generalizada, aos 76 anos, por volta das 5h30, na cidade de São Paulo.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

A Doce Vida

Márcio Calafiori

Quando Marcello Rubini vê o polvo estendido na beira da praia — a cena final de A Doce Vida —, o jovem teve a certeza perfeita de que seria capaz de fazer um filme igual àquele. Rubini almeja ser um grande escritor, mas vive comprometido em um cotidiano medíocre. É um homem entediado e sem saída, personagem-símbolo da Roma moderna e decadente, estampada na tela. Embora apresente essa carga existencial, A Doce Vida é um filme envolvente, poético e... tristemente risonho.
No cinema, o jovem estava fascinado, como se o diagrama da sua vida fosse dividido em antes e depois de A Doce Vida. Viu o filme quatro vezes, mas precisava dividir com alguém a emoção nova e surpreendente. Convenceu então um amigo a acompanhá-lo ao cinema, como se o convidasse para ir ao circo:
— Você não pode perder A Doce Vida. O filme é de 1960, mas está de volta aos cinemas, em uma cópia nova, restaurada! Tem cada cena!
— Fala uma...
— É difícil descrever as cenas de A Doce Vida, pois tudo está incorporado a um grande contexto, a um panorama complexo. Não é algo que se pode isolar, certo?
— Não entendo um filme que não se pode contar uma cena.
— Você nunca viu nada igual!
— É colorido ou preto-e-branco?
— É preto-e-branco, mas você vai gostar. Confie em mim!...
O outro não ficou nem um pouco impressionado. Mas ao instigar o amigo para assistir A Doce Vida, o jovem só queria anunciar:
— Decidi: vou ser cineasta. Vou fazer um filme igual a esse!
— Você está louco?
— Como assim?...
— Esse filme é parado demais, quase dormi no cinema!
A Doce Vida é uma sucessão de episódios sem muita ligação entre si, a não ser pela presença de Marcello Rubini, interpretado por Marcello Mastroianni. Para o jovem, tratava-se de um filme simples, muito simples. Tanto que inspirado pela obra de Fellini começou a escrever a sua própria obra-prima, intitulada A Vida Inebriante.
A obra do diretor italiano havia muito saíra de cartaz, mas o jovem conservava cada cena de A Doce Vida impressa no coração. Marcello Rubini era como um amigo. Por coincidência, o personagem do filme que estava escrevendo também se chamava Marcelo.
Ao concluir a história, o jovem sentiu-se honrado. E pôs mãos à obra. Queria rodar uma cena do roteiro que acabara de escrever. Conseguiu uma câmera Super 8, reuniu os amigos, colocou os óculos escuros de diretor de cinema e exclamou:
— Ação!
A cena exigia que Marcelo, o personagem principal de A Vida Inebriante, lançasse à câmera um olhar existencial, exatamente como Marcello Rubini, em A Doce Vida.
Camelo, que interpretava Marcelo, recusou-se a fazer o olhar:
— Não sei fazer essa expressão. Não vai ficar legal...
— A cena vai ficar legal, sim! Quem é o diretor aqui? Colabora, Camelo, por favor!
Pegou a câmera e exclamou de novo:
— Ação!...
— Não vou filmar mais! — disse Camelo.
Atrás dos óculos escuros, o jovem estava exausto. O que o Fellini faria em seu lugar? O roteiro de A Vida Inebriante lhe parecia, agora, uma sucessão de cenas frouxas e sem nexo, nada a ver com a narrativa vigorosa de A Doce Vida. Os amigos aguardavam uma decisão. Ele então anunciou:
— Não tem mais filme!...
— Como assim, não tem mais filme?...
— Não tem mais filme…

terça-feira, 27 de maio de 2008

Isabella, a notícia

Márcio Calafiori

A imprensa tem sido criticada por expor, exageradamente, o assassinato de Isabella. Há quase um mês, o assunto não sai dos jornais, do rádio e da TV. Do ponto de vista jornalístico, o crime é uma boa história. Envolve a morte de uma criança indefesa. Envolve pais e filhos. Envolve mistério. Envolve brutalidade: antes de ser atirada da janela do sexto andar de um edifício em São Paulo, a garota de 5 anos foi espancada, ferida e estrangulada. Infelizmente, isso é notícia.
O escritor Don DeLillo percebeu o impacto da informação na sociedade contemporânea e disse: “As pessoas parecem precisar de notícias, de qualquer tipo: más notícias, notícias sensacionalistas, notícias irresistíveis. Pelo jeito, a notícia é a narrativa de nosso tempo”. Dependendo da intensidade e de como repercute em determinado contexto social, a notícia tem o efeito de sensibilizar, escandalizar e de mobilizar a multidão. Como a do assassinato de Isabella. Cabe à imprensa, portanto, cumprir a sua função: a de informar e a de tentar dar respostas. É para isso que o jornalismo existe.
O conceito de notícia é sensacionalista por natureza. Atende aos nossos instintos mais remotos, mais primitivos. Uma das frases anotadas por Michel de Montaigne nas vigas de sua biblioteca dizia: “O gênero humano é muito ávido de narrativas”. A curiosidade é irresistível. Sempre queremos saber como acaba a história. É com base nisso que a publicação da notícia funciona.
Quanto à cobertura excessiva no caso Isabella, o comportamento da imprensa reflete a perturbação coletiva. Trata-se de um dos crimes mais cruéis já cometidos no País. A exposição do assunto tem revelado estatísticas e fatos que nos inquietam, mas sobre os quais, de algum modo, temos preferido calar. Os especialistas se pronunciam e constatamos o quê? Que muitas das nossas crianças têm sido vítimas constantes da violência, do trabalho escravo a espancamentos, torturas e até mesmo abuso sexual, este quase sempre praticado em família, e não só nas famílias pobres.
Pode-se reclamar da overdose de informação e da especulação em torno do assassinato, mas a postura da imprensa, é bom que se diga, evoluiu para melhor. Somos lembrados a todo o momento da Escola Base e do quanto é preciso ter cautela no presente caso. Ao contrário do que ocorreu em São Paulo, em março de 1994, quando a escola foi depredada pela população que agiu com base no que era divulgado irresponsavelmente pela imprensa, dessa vez o casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá teve a oportunidade de se defender publicamente, num longo depoimento à TV.
Vivêssemos em uma sociedade democrática de fato, estaríamos agora confiantes na Justiça e muito menos instigados em relação ao pré-julgamento do pai e da madrasta de Isabella de que a imprensa tem sido, também, acusada. Mas na cobertura de casos como a do crime bárbaro que pôs fim à vida dessa menina, não existe meio-termo. Como diz o escritor e repórter Gay Talese, os jornalistas vivem com a tensão à flor da pele e a sua presença tem o poder de desencadear um incidente. Notícia é notícia.

Publicado no jornal Boqueirão em 26 de abril de 2008.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Django

Márcio Calafiori

Meu pai queria fazer um trato. Era o seguinte: ele decidira comprar uma televisão e por isso, a partir de agora, meu irmão e eu teríamos de esquecer o cinema; não fosse assim, não daria para honrar o compromisso financeiro assumido com a loja. Concordamos na hora! Era 1967 e só então a cidade de Rio Grande começara a receber regularmente, e sem falhas técnicas, a transmissão de TV.
A nossa melhor diversão sempre fora o cinema. Morávamos defronte ao Cine Glória, mas também não perdíamos as sessões do Sete de Setembro e do Carlos Gomes. Íamos ao cinema aos sábados, domingos e feriados. Aos domingos, no Sete de Setembro, havia sessões às 10 da manhã. Numa delas vimos um filme sobre um pianista que morre ao rolar de uma escadaria. Uma de suas mãos sai do túmulo e começa a estrangular os herdeiros que querem vender a sua mansão. Por isso, o título: Os Dedos da Morte. Uma das cenas mais assustadoras é quando a mão assassina toca um piano na penumbra da casa. Meu irmão e eu ficamos apavorados. Uma mão separada do corpo tocando piano!
Mas ir ao cinema, agora, era coisa do passado. Minha mãe fez um bolo ouro-e-prata coberto de creme para comemorarmos a chegada da TV. À noite, nos reunimos na sala para assistir a um filme antigo, sobre um avião pequeno que faz uma aterrissagem forçada na selva. Enquanto o conserta, o piloto anuncia aos passageiros que dois deles não poderão mais seguir viagem; caso contrário, o avião não terá condições de levantar vôo.
O clima fica tenso. Um velho se apodera de um revólver, ameaça o grupo e avisa: ele é que decidirá quem vai ou não embarcar. O piloto consegue consertar o aparelho. Chega o dia da partida. Chega a hora. Está tudo pronto. O suspense é insuportável. Enfim, a decisão: o senhor entrega o revólver ao piloto e diz que ele e a mulher serão os sacrificados, pois já viveram o bastante, enquanto os outros passageiros são jovens ainda. O avião levanta vôo. O casal de velhos se abraça na solidão brutal da selva. Que filme!

No domingo à tarde, porém, a programação da TV estava chata demais. Fui à sacada e olhei a rua. Pô! A fila para a sessão das quatro do Glória dobrava a esquina. Disposto a cumprir o trato, naquele dia eu nem verificara a programação do cinema. Que mancada! Chamei o meu irmão para ver o tamanho da fila. Ele me olhou com uma cara que queria dizer exatamente isso: "Que espécie de trato fizemos com o papai?". Não tive dúvida. Fui ao Glória conferir o filme que atraia aquela multidão: "HOJE, DJANGO!"
Um homem vestido de preto apontava um revólver prateado bem na direção da cara de quem olhava o cartaz. Era um painel imenso, magnífico, que prometia a mais pura emoção. Corri de volta para casa e disse ao meu irmão:
— O filme é DJANGO!... DJANGO!
— Não podemos perder, não podemos perder de jeito nenhum! Mas e o trato?...
Meu pai estava no quarto, lendo. Ouviu o nosso pedido e, em seguida, disse:
— E o nosso acordo?
— ???...
— Dessa vez vou deixar passar, mas aprendam logo: os tratos foram feitos para ser cumpridos.
Conseguimos entrar no cinema bem na hora em que estava começando o trailer do filme do próximo domingo: PECOS, sobre um pistoleiro que primeiro atirava e só depois dizia o nome. Antes de morrer, o bandido balbuciava, cuspindo sangue:
— Qual é o teu nome?...
E o pistoleiro misterioso respondia:
— Meu nome é Pecos!
Então, as luzes do Cine Glória se apagaram. Chegara o grande momento. Django surge na tela puxando um caixão de defunto. O cinema vem abaixo. Gritos e palmas. Lá pelas tantas, ele começa a pôr em ação o plano para vingar o assassinato da esposa. Surpresa: dentro do caixão tem uma metralhadora!
Django começa a montá-la...
Agora, assobiamos, gritamos e o avisamos sobre os homens que estão de tocaia, dispostos a matá-lo. Numa fileira próxima, um guri tenta arrancar a poltrona do lugar. Não consegue. Então ele atira o sapato em direção à tela, tentando acertar um bandido. Enquanto isso, a metralhadora de Django cospe fogo e balas. O Glória treme.
Na saída, digo para o meu irmão:
— Aquele filme de ontem na TV foi legal, mas nem de longe se compara a Django!
— É mesmo, Django é demais, é demais!...
— No domingo que vem...
— O quê?
— ...........
— O quê?!
— ...não vou perder o Pecos; não vou mesmo!
— Mas e o trato com o papai?
— O trato com o papai que se dane!

quinta-feira, 1 de maio de 2008

O assassinato do motoboy

Márcio Calafiori

Que saudade do Pena Branca. O Pena Branca era o Octávio Ribeiro, o maior repórter policial que o Brasil já teve. Ele era tão bom que a sua trajetória profissional inspirou a criação de um antigo seriado da Rede Globo, o Plantão de Polícia.
Em novembro de 1984, quando mataram o também repórter policial Mário Eugênio, do Correio Braziliense, quem o jornal contratou para esclarecer o assassinato? O Pena Branca, lógico! Ele resolveu o caso em dez dias ou duas semanas, não me lembro bem. O assassinato de Mário Eugênio fora encomendado por um coronel do Exército. Moral da história: o Correio Braziliense fez questão de ir além da investigação oficial.
Se o Pena Branca estivesse vivo — ele morreu em 1986 — e trabalhando no caso do motoboy Firmino Barbosa, assassinado com 11 tiros pelo promotor do Ministério Público de São Paulo, Pedro Bacarat Guimarães Pereira, no início de janeiro, em São Paulo, com certeza já teria desvendado o crime. Para variar, a imprensa está esperando a investigação oficial. Isso põe em cheque o seu comodismo em não investigar, em não trazer à luz, com ênfase, todas as contradições que cercam a versão do promotor.

Ele portava uma pistola automática 9 milímetros, arma de uso restrito das Forças Armadas. Antes do assassinato, na companhia da namorada Regiane Zampar, também promotora, Pedro Bacarat comprou uma camisa social para presentear um de seus três irmãos (segundo a revista Veja, dois deles são delegados de polícia e um terceiro, juiz). Depois de atingir mortalmente o motoboy Firmino, que não estava armado, Bacarat ligou para os seus irmãos policiais e, em seguida, avisou um amigo da promotoria.
Os cinco relógios que teriam sido roubados por Firmino, em outros assaltos, só apareceram depois que ele foi levado para o hospital. Pedro Bacarat matou-o porque o motoboy teria tentado lhe tomar o relógio, fingindo que estava armado. Ou seja, o motoboy já tinha “roubado” cinco relógios e ia “roubar” mais um. Durante o protesto da semana passada que os motociclistas fizeram contra o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, que quer impedi-los de trafegar nas marginais Pinheiros e Tietê, a mãe do motoboy disse mais uma vez: “O meu filho não era bandido”. Ao que parece ela prega para os bichos que habitam o deserto.
Até agora, o que mais se fala a respeito do assassinato do motoboy é que não pode haver pré-julgamento. Mas pára aí: pré-julgamento para quem? Firmino Barbosa, que era casado há oito anos, tinha um filho de 7 e cuja viúva está grávida, não possuía passagem pela polícia. Só virou ladrão depois de ser assassinado com 11 tiros. Portanto, impedido de dar a sua versão. Democracia implica também igualdade de direitos. E de opinião. No Brasil, a democracia funciona para poucos. Por falar nisso: tem algum Pena Branca por aí?

Publicado no jornal Boqueirão em 26 de janeiro de 2008.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Sobre cocô de cachorro e galos

Márcio Calafiori

No bairro onde moro, em Santos, esbarro em cocô de cachorro de manhã, de tarde e de noite. À noite, é comum ver moradores que descem dos prédios e, pachorrentos, aguardam, enquanto os animais defecam bem em cima da calçada; de preferência, bem ali no meio da calçada, onde daqui a pouco você vai pisar. Não tive ainda a oportunidade de presenciar alguém recolher o cocô, mas sei que existe gente que limpa o que os bichos sujam. Mas esta não é a regra.


Pisar em cocô está entre as dez coisas mais porcas, irritantes e lastimáveis do dia-a-dia. Isso me faz lembrar da minha mãe. Ela esfregava o focinho dos cachorros no chão, até que aprendessem o lugar certo de fazer xixi e cocô. Se fosse hoje, a minha mãe seria denunciada à sociedade protetora dos animais. Ocorre que quando tivemos bichos em casa, e lá se vão mais de quarenta anos, o mundo era diferente. Gente era gente e bicho era bicho. E gente e bicho éramos todos educados.

Hoje, os animais domésticos cumprem uma função social e psicológica importante. Servem de companhia para a criança que não pôde ter um irmão, para quem vive só ou para o casal de idosos, cujos filhos e netos moram nos Estados Unidos ou no Japão, exilados pela falta de oportunidades no Brasil. Diante disso, os bichos são mimados como bebês: têm plano de saúde e usam casaquinhos, lacinhos, sapatinhos e tudo o mais o que este importante membro da família merece. Mas é bom lembrar: os pet shops vendem sacos plásticos adequados para que o dono recolha a porcaria da calçada.

Comecei falando sobre cocô de cachorro, mas na verdade quero contar o seguinte: moro em frente a uma quitanda. O dono da quitanda, um japonês, tem ali um quintal imenso e resolveu criar dois galos e três galinhas. Às quatro da manhã, os galos cantavam. O poeta diria: “Os galos tecem a manhã”. Gosto de ouvi-los. É como se algo primitivo viesse visitar-me na paisagem urbana e concreta. Gostava também da árvore na casa ao lado do meu prédio, cujos galhos quase entravam em meu quarto. Alguém do prédio deve ter reclamado e a árvore foi cortada. Nunca mais ouvi os passarinhos que ali pousavam.


Recentemente, fizeram uma reclamação à Ouvidoria Pública e um fiscal da saúde pública visitou a quitanda. O japonês foi obrigado a se livrar dos galos. Agora, pelo menos na minha rua, eles não cantam mais. Mas o bairro que conseguiu se livrar da sinfonia silvestre continua envenenado por cocô de cachorro.

Publicado no jornal Boqueirão em 29 de setembro de 2007.

De olhos bem abertos

Márcio Calafiori

Recentemente, uma rádio de São Paulo fez uma enquete com os ouvintes para saber se dinheiro traz felicidade. Não opinei, mas inspirado pela pesquisa quero contar o seguinte: o meu pai tem 78 anos. A lembrança mais persistente que tenho dele é a sua relação com a leitura. Ele adora ler. Lê todos os dias e, de seis anos para cá, desde que ficou viúvo, lê da uma às seis da manhã. “Não há nada que me distraia mais do que a leitura”, costuma dizer-me.


Em 2004 e 2005, ele foi operado da catarata e da miopia numa clínica especializada de Santos. Primeiro de um olho e, noventa dias depois, do outro. Mas continuou com o astigmatismo. No ano passado, começou a ter problemas sérios de visão. Consultou um oftalmologista e obteve uma nova receita de óculos. No entanto, começou a enxergar cada vez pior de longe. Em março, passou a enxergar mal também de perto. Em agosto, já não conseguia mais ler. Tentou marcar uma consulta na clínica onde fora operado. Consulta? Só para dezembro. Mandei que insistisse. Conseguiu, enfim, ser atendido no fim de setembro.

O médico que o examinou disse que iria tentar melhorar a sua visão de perto, mas com a de longe não havia mais o quê fazer. Em seguida, se pôs a filosofar: “A idade é mesmo assim. É preciso ter paciência, saber se conformar”. A receita nova para os óculos de perto não surtiu efeito. Ficar sem a leitura deixou meu pai deprimido. Ao conversar com um colega sobre o problema, este lhe contou que tinha um amigo oftalmologista em São Paulo, profissional competente. Perguntou se meu pai podia pagar R$ 350 pela consulta. Ele respondeu que sim!

O médico da Capital deu-lhe o diagnóstico: o seu problema de visão era muito fácil de resolver com a aplicação de laser. Além da consulta de R$ 350, o laser custou R$ 1 mil (R$ 500 para cada olho, preço à vista). Como fora levado por um amigo, meu pai teve direito a um desconto. À noite, já estava lendo. Quinze dias depois, voltou a São Paulo. Foi quando reclamou da visão de longe. O oftalmologista confrontou a antiga receita com as lentes que ele usava. Havia uma diferença no eixo do olho direito. O eixo correto era 160. A receita marcava 60. As lentes foram trocadas e meu pai voltou a enxergar bem de longe.


O laser é um procedimento caro. No caso do meu pai, das duas uma: ou o médico de Santos não quis fazer a aplicação porque teria de cumprir a tabela de preços do convênio (e nesse caso que se dane o paciente) ou trata-se de um charlatão. Em qualquer das alternativas estamos diante de um canalha. Meu pai costuma ler um jornal por dia e um livro por semana, às vezes dois; acaba de aprender a usar o DVD e, no momento, se aventura no computador. Ter o dinheiro para o laser e a consulta em São Paulo lhe proporcionou felicidade e bem-estar. E uma lição: ele agora está de olhos bem abertos.

Publicado no jornal Boqueirão em 16 de fevereiro de 2008.