quarta-feira, 28 de maio de 2008

A Doce Vida

Márcio Calafiori

Quando Marcello Rubini vê o polvo estendido na beira da praia — a cena final de A Doce Vida —, o jovem teve a certeza perfeita de que seria capaz de fazer um filme igual àquele. Rubini almeja ser um grande escritor, mas vive comprometido em um cotidiano medíocre. É um homem entediado e sem saída, personagem-símbolo da Roma moderna e decadente, estampada na tela. Embora apresente essa carga existencial, A Doce Vida é um filme envolvente, poético e... tristemente risonho.
No cinema, o jovem estava fascinado, como se o diagrama da sua vida fosse dividido em antes e depois de A Doce Vida. Viu o filme quatro vezes, mas precisava dividir com alguém a emoção nova e surpreendente. Convenceu então um amigo a acompanhá-lo ao cinema, como se o convidasse para ir ao circo:
— Você não pode perder A Doce Vida. O filme é de 1960, mas está de volta aos cinemas, em uma cópia nova, restaurada! Tem cada cena!
— Fala uma...
— É difícil descrever as cenas de A Doce Vida, pois tudo está incorporado a um grande contexto, a um panorama complexo. Não é algo que se pode isolar, certo?
— Não entendo um filme que não se pode contar uma cena.
— Você nunca viu nada igual!
— É colorido ou preto-e-branco?
— É preto-e-branco, mas você vai gostar. Confie em mim!...
O outro não ficou nem um pouco impressionado. Mas ao instigar o amigo para assistir A Doce Vida, o jovem só queria anunciar:
— Decidi: vou ser cineasta. Vou fazer um filme igual a esse!
— Você está louco?
— Como assim?...
— Esse filme é parado demais, quase dormi no cinema!
A Doce Vida é uma sucessão de episódios sem muita ligação entre si, a não ser pela presença de Marcello Rubini, interpretado por Marcello Mastroianni. Para o jovem, tratava-se de um filme simples, muito simples. Tanto que inspirado pela obra de Fellini começou a escrever a sua própria obra-prima, intitulada A Vida Inebriante.
A obra do diretor italiano havia muito saíra de cartaz, mas o jovem conservava cada cena de A Doce Vida impressa no coração. Marcello Rubini era como um amigo. Por coincidência, o personagem do filme que estava escrevendo também se chamava Marcelo.
Ao concluir a história, o jovem sentiu-se honrado. E pôs mãos à obra. Queria rodar uma cena do roteiro que acabara de escrever. Conseguiu uma câmera Super 8, reuniu os amigos, colocou os óculos escuros de diretor de cinema e exclamou:
— Ação!
A cena exigia que Marcelo, o personagem principal de A Vida Inebriante, lançasse à câmera um olhar existencial, exatamente como Marcello Rubini, em A Doce Vida.
Camelo, que interpretava Marcelo, recusou-se a fazer o olhar:
— Não sei fazer essa expressão. Não vai ficar legal...
— A cena vai ficar legal, sim! Quem é o diretor aqui? Colabora, Camelo, por favor!
Pegou a câmera e exclamou de novo:
— Ação!...
— Não vou filmar mais! — disse Camelo.
Atrás dos óculos escuros, o jovem estava exausto. O que o Fellini faria em seu lugar? O roteiro de A Vida Inebriante lhe parecia, agora, uma sucessão de cenas frouxas e sem nexo, nada a ver com a narrativa vigorosa de A Doce Vida. Os amigos aguardavam uma decisão. Ele então anunciou:
— Não tem mais filme!...
— Como assim, não tem mais filme?...
— Não tem mais filme…

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