Márcio Calafiori
Sábado passado levei a última punhalada do Gonzaga, talvez o bairro de Santos que mais tenha se transformado nos últimos anos. Foi assim. Depois de prestigiar o lançamento do livro de um amigo resolvi beber um pouco mais. Isso mesmo. Que se dane o médico, pensei. Dirigi-me então a uma churrascaria. De bar e de bebida entendo um pouco. Portanto, posso garantir: o chope ali era fora de série. A começar pela tulipa, de vidro bem fino. Depois, a espuma cremosa. A bebida chegava transbordando sobre o balcão. Um ritual soberbo.
Acomodei-me e, perscrutando a reforma da casa, que ainda não tinha visto, pedi um chope. E depois outro. Estranho. Alguma coisa não funcionava. Seria o sabor da bebida? Pedi mais um. Súbito, mirei a bolacha de papelão que amparava a tulipa e deparei uma marca, uma dessas que o bebedor exigente não admite. Para certificar-me do que acabara de ler era mesmo verdade, chamei o garçom e o interpelei. “Por favor, que chope é esse?”. “Ah, o nosso agora é o da...”. E confirmou a marca. Então era isso! O piso, os azulejos, as banquetas com estofado novo, quem sabe até mesmo os espelhos reluzentes. A custa do quê? Da troca da marca do chope, da bebida sagrada que por décadas a fio ajudou a produzir ali um fenômeno que só com muito trabalho, empenho e orgulho um comerciante consegue: a tradição!
Diz a lenda que Tom Jobim freqüentava uma churrascaria no Rio de Janeiro que servia um chope excelente, mas que não era a sua marca preferida. No entanto, a casa fazia questão de ir buscar a marca de que o compositor gostava no bar ao lado. Em Santos, pelo menos no Gonzaga, não dá para pedir ao garçom para ir pegar o chope no bar ao lado. Dois dos estabelecimentos que marcaram época no bairro, e que sobrevivem até hoje, mandaram a tradição às favas. Como se sabe, a tradição é parte essencial do enredo de uma cidade. Numa dessas casas, o sanduíche de filé era um monumento. O local foi reformulado, o sanduíche diminuiu de tamanho e o chope, agora de outra marca, tem gosto de remédio. Ou pelo menos tinha, desde a última vez em que ali pisei.
No último sábado, enquanto cogitava esses quesitos preocupantes para um bebedor, mas que, enfim, também dizem algo a respeito de como se dissipam a tradição e a glória de uma cidade, a casa foi enchendo. Exatamente como nos velhos tempos em que a paisagem noturna do Gonzaga era estimulada também pelo movimento da cinelândia e de outras atrações que faziam o seu coração pulsar.
Quando cheguei à churrascaria, só havia um casal. Agora, a casa estava lotada. A pedido dos garçons, alguns clientes até mesmo trocavam de lugar, para os que chegavam pudessem se acomodar ao longo do balcão. O público ali era formado por homens e mulheres na faixa etária de 30 a 70 anos. Ao meu lado, sentou-se um casal muito jovem. Atrás de mim, mais gente esperava a vez.
Refleti: se um local assim consegue reunir gente de idades distintas isso se deve justamente à tradição. Daqui a pouco chegariam outros clientes e a fila então alcançaria a rua. Tudo como há mais de 45 anos. Menos o chope, o indício preocupante e real de que nada mais é sagrado. Pedi a conta. Solícito e gentil, o garçom disse: “Muito obrigado e apareça mais, pois o senhor sumiu. Volte sempre!”. Agradeci, mas não volto mais.
Publicado no jornal Boqueirão em 21 de junho de 2008.
segunda-feira, 30 de junho de 2008
terça-feira, 24 de junho de 2008
Mimi, o Metalúrgico
Márcio Calafiori
Em 1973, Mimi, o Metalúrgico, de Lina Wertmuller, foi retirado às pressas de cartaz em todo o território nacional. No domingo à noite, na Cinelândia, eu podia ter visto qualquer outro filme, mas calhou de ser Mimi. Foi uma escolha aleatória. Na segunda-feira, o professor de História do Ginásio Estadual do Gonzaga comentou a proibição. Não entendi bem, mas levantei a mão, pedindo permissão para falar:
— Vi esse filme ontem!
— Não acredito!...
— Vi Mimi, sim! Ontem à noite, na sessão das oito.
Ele me convidou então para contar à classe as minhas impressões sobre a obra.
— Ver Mimi foi a maior moleza! — comecei dizendo. — O porteiro do Cine Roxy nem desconfiou da minha carteirinha falsificada!
O professor me interrompeu e referiu-se ao conteúdo político do filme. Respondi:
— Político?... Mimi não tem nada de político! É comédia pura! Um dos filmes mais engraçados que já vi na vida! O senhor precisava ver a cara do Mimi, principalmente quando ele tenta acertar a mulher dele com uma faca, porque ela o traiu com um cara. Que cena! Que cena!...
Paciente, o professor propôs:
— Vamos ver a questão por outro lado... Você acha engraçado alguém trair e ser traído? Será que não existe aí uma simbologia política?
— É porque o senhor não viu o filme! É só comédia. Tem uma hora em que o Mimi leva uma gorda imensa pra cama e o bundão dela enche toda a tela do cinema!
Mimi!... De repente, o herói da classe — em guarda contra o professor de História.
Em 1973, Mimi, o Metalúrgico, de Lina Wertmuller, foi retirado às pressas de cartaz em todo o território nacional. No domingo à noite, na Cinelândia, eu podia ter visto qualquer outro filme, mas calhou de ser Mimi. Foi uma escolha aleatória. Na segunda-feira, o professor de História do Ginásio Estadual do Gonzaga comentou a proibição. Não entendi bem, mas levantei a mão, pedindo permissão para falar:
— Vi esse filme ontem!
— Não acredito!...
— Vi Mimi, sim! Ontem à noite, na sessão das oito.
Ele me convidou então para contar à classe as minhas impressões sobre a obra.
— Ver Mimi foi a maior moleza! — comecei dizendo. — O porteiro do Cine Roxy nem desconfiou da minha carteirinha falsificada!
O professor me interrompeu e referiu-se ao conteúdo político do filme. Respondi:
— Político?... Mimi não tem nada de político! É comédia pura! Um dos filmes mais engraçados que já vi na vida! O senhor precisava ver a cara do Mimi, principalmente quando ele tenta acertar a mulher dele com uma faca, porque ela o traiu com um cara. Que cena! Que cena!...
Paciente, o professor propôs:
— Vamos ver a questão por outro lado... Você acha engraçado alguém trair e ser traído? Será que não existe aí uma simbologia política?
— É porque o senhor não viu o filme! É só comédia. Tem uma hora em que o Mimi leva uma gorda imensa pra cama e o bundão dela enche toda a tela do cinema!
Mimi!... De repente, o herói da classe — em guarda contra o professor de História.
segunda-feira, 16 de junho de 2008
Meu querido Golias
Márcio Calafiori
Na minha cidade não havia TV. Ou melhor: todo mundo tinha um aparelho na sala, mas a imagem só chegava de vez em quando, duas ou três vezes por mês. Portanto, a nossa diversão era mesmo o cinema.
Em 1967, quando Rio Grande, enfim, começou a receber regularmente a transmissão de TV, a Record nos apresentou um personagem absolutamente engraçado, digno de rivalizar com Jerry Lewis — Ronald Golias. Para nós, guris, não existia diversão melhor que a Família Trapo. Golias era o nosso novo herói.
Quem era mais engraçado? Ele ou comediante americano? Na sala de aula só um achava que o mais divertido era o “Gerry Levis”. Esse colega tinha os seus argumentos, mas para espicaçá-lo botávamos a mão embaixo do sovaco esquerdo e, pressionando-o, fazíamos um barulho parecido com um pum:
— Pernachia pra ti, ó... pernachia!
O nosso pernachia era uma mistura do desaforado Bronco, personagem do Golias na Família Trapo, com o Pepino, o personagem de Otelo Zeloni, chefe da família. Por qualquer motivo, a sala de aula virava um coro de pernachias. Na classe, havia também o concurso de quem conseguia fazer a imitação mais legal do Golias. Para imitá-lo, era preciso encompridar o queixo. Isso porque, além do sentimento, o segredo do humor de Golias está concentrado no queixo.
Certa vez passei na rua Augusta, em São Paulo. Lembrei então que o humorista gostava muito de um sapateiro que existira ali. Consta que quando soube que a loja seria fechada para sempre, ele encomendou ao artesão cem pares do mesmo sapato. Genial.
Depois de anos de afastamento, Golias voltou à TV. Sempre que ao trocar de canal eu o flagrava em algum programa, parava para assisti-lo um pouco. E dizia para os meus botões: “Ele nunca mudou. O meu querido Golias continua o mesmo.”
Ronald Golias morreu em 27 de setembro de 2005 de infecção generalizada, aos 76 anos, por volta das 5h30, na cidade de São Paulo.
Na minha cidade não havia TV. Ou melhor: todo mundo tinha um aparelho na sala, mas a imagem só chegava de vez em quando, duas ou três vezes por mês. Portanto, a nossa diversão era mesmo o cinema.
Em 1967, quando Rio Grande, enfim, começou a receber regularmente a transmissão de TV, a Record nos apresentou um personagem absolutamente engraçado, digno de rivalizar com Jerry Lewis — Ronald Golias. Para nós, guris, não existia diversão melhor que a Família Trapo. Golias era o nosso novo herói.
Quem era mais engraçado? Ele ou comediante americano? Na sala de aula só um achava que o mais divertido era o “Gerry Levis”. Esse colega tinha os seus argumentos, mas para espicaçá-lo botávamos a mão embaixo do sovaco esquerdo e, pressionando-o, fazíamos um barulho parecido com um pum:
— Pernachia pra ti, ó... pernachia!
O nosso pernachia era uma mistura do desaforado Bronco, personagem do Golias na Família Trapo, com o Pepino, o personagem de Otelo Zeloni, chefe da família. Por qualquer motivo, a sala de aula virava um coro de pernachias. Na classe, havia também o concurso de quem conseguia fazer a imitação mais legal do Golias. Para imitá-lo, era preciso encompridar o queixo. Isso porque, além do sentimento, o segredo do humor de Golias está concentrado no queixo.
Certa vez passei na rua Augusta, em São Paulo. Lembrei então que o humorista gostava muito de um sapateiro que existira ali. Consta que quando soube que a loja seria fechada para sempre, ele encomendou ao artesão cem pares do mesmo sapato. Genial.
Depois de anos de afastamento, Golias voltou à TV. Sempre que ao trocar de canal eu o flagrava em algum programa, parava para assisti-lo um pouco. E dizia para os meus botões: “Ele nunca mudou. O meu querido Golias continua o mesmo.”
Ronald Golias morreu em 27 de setembro de 2005 de infecção generalizada, aos 76 anos, por volta das 5h30, na cidade de São Paulo.
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