segunda-feira, 30 de junho de 2008

Volte sempre

Márcio Calafiori

Sábado passado levei a última punhalada do Gonzaga, talvez o bairro de Santos que mais tenha se transformado nos últimos anos. Foi assim. Depois de prestigiar o lançamento do livro de um amigo resolvi beber um pouco mais. Isso mesmo. Que se dane o médico, pensei. Dirigi-me então a uma churrascaria. De bar e de bebida entendo um pouco. Portanto, posso garantir: o chope ali era fora de série. A começar pela tulipa, de vidro bem fino. Depois, a espuma cremosa. A bebida chegava transbordando sobre o balcão. Um ritual soberbo.
Acomodei-me e, perscrutando a reforma da casa, que ainda não tinha visto, pedi um chope. E depois outro. Estranho. Alguma coisa não funcionava. Seria o sabor da bebida? Pedi mais um. Súbito, mirei a bolacha de papelão que amparava a tulipa e deparei uma marca, uma dessas que o bebedor exigente não admite. Para certificar-me do que acabara de ler era mesmo verdade, chamei o garçom e o interpelei. “Por favor, que chope é esse?”. “Ah, o nosso agora é o da...”. E confirmou a marca. Então era isso! O piso, os azulejos, as banquetas com estofado novo, quem sabe até mesmo os espelhos reluzentes. A custa do quê? Da troca da marca do chope, da bebida sagrada que por décadas a fio ajudou a produzir ali um fenômeno que só com muito trabalho, empenho e orgulho um comerciante consegue: a tradição!
Diz a lenda que Tom Jobim freqüentava uma churrascaria no Rio de Janeiro que servia um chope excelente, mas que não era a sua marca preferida. No entanto, a casa fazia questão de ir buscar a marca de que o compositor gostava no bar ao lado. Em Santos, pelo menos no Gonzaga, não dá para pedir ao garçom para ir pegar o chope no bar ao lado. Dois dos estabelecimentos que marcaram época no bairro, e que sobrevivem até hoje, mandaram a tradição às favas. Como se sabe, a tradição é parte essencial do enredo de uma cidade. Numa dessas casas, o sanduíche de filé era um monumento. O local foi reformulado, o sanduíche diminuiu de tamanho e o chope, agora de outra marca, tem gosto de remédio. Ou pelo menos tinha, desde a última vez em que ali pisei.
No último sábado, enquanto cogitava esses quesitos preocupantes para um bebedor, mas que, enfim, também dizem algo a respeito de como se dissipam a tradição e a glória de uma cidade, a casa foi enchendo. Exatamente como nos velhos tempos em que a paisagem noturna do Gonzaga era estimulada também pelo movimento da cinelândia e de outras atrações que faziam o seu coração pulsar.
Quando cheguei à churrascaria, só havia um casal. Agora, a casa estava lotada. A pedido dos garçons, alguns clientes até mesmo trocavam de lugar, para os que chegavam pudessem se acomodar ao longo do balcão. O público ali era formado por homens e mulheres na faixa etária de 30 a 70 anos. Ao meu lado, sentou-se um casal muito jovem. Atrás de mim, mais gente esperava a vez.
Refleti: se um local assim consegue reunir gente de idades distintas isso se deve justamente à tradição. Daqui a pouco chegariam outros clientes e a fila então alcançaria a rua. Tudo como há mais de 45 anos. Menos o chope, o indício preocupante e real de que nada mais é sagrado. Pedi a conta. Solícito e gentil, o garçom disse: “Muito obrigado e apareça mais, pois o senhor sumiu. Volte sempre!”. Agradeci, mas não volto mais.

Publicado no jornal Boqueirão em 21 de junho de 2008.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Mimi, o Metalúrgico

Márcio Calafiori

Em 1973, Mimi, o Metalúrgico, de Lina Wertmuller, foi retirado às pressas de cartaz em todo o território nacional. No domingo à noite, na Cinelândia, eu podia ter visto qualquer outro filme, mas calhou de ser Mimi. Foi uma escolha aleatória. Na segunda-feira, o professor de História do Ginásio Estadual do Gonzaga comentou a proibição. Não entendi bem, mas levantei a mão, pedindo permissão para falar:
— Vi esse filme ontem!
— Não acredito!...
— Vi Mimi, sim! Ontem à noite, na sessão das oito.
Ele me convidou então para contar à classe as minhas impressões sobre a obra.
— Ver Mimi foi a maior moleza! — comecei dizendo. — O porteiro do Cine Roxy nem desconfiou da minha carteirinha falsificada!
O professor me interrompeu e referiu-se ao conteúdo político do filme. Respondi:
— Político?... Mimi não tem nada de político! É comédia pura! Um dos filmes mais engraçados que já vi na vida! O senhor precisava ver a cara do Mimi, principalmente quando ele tenta acertar a mulher dele com uma faca, porque ela o traiu com um cara. Que cena! Que cena!...
Paciente, o professor propôs:
— Vamos ver a questão por outro lado... Você acha engraçado alguém trair e ser traído? Será que não existe aí uma simbologia política?
— É porque o senhor não viu o filme! É só comédia. Tem uma hora em que o Mimi leva uma gorda imensa pra cama e o bundão dela enche toda a tela do cinema!
Mimi!... De repente, o herói da classe — em guarda contra o professor de História.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Meu querido Golias

Márcio Calafiori

Na minha cidade não havia TV. Ou melhor: todo mundo tinha um aparelho na sala, mas a imagem só chegava de vez em quando, duas ou três vezes por mês. Portanto, a nossa diversão era mesmo o cinema.
Em 1967, quando Rio Grande, enfim, começou a receber regularmente a transmissão de TV, a Record nos apresentou um personagem absolutamente engraçado, digno de rivalizar com Jerry Lewis — Ronald Golias. Para nós, guris, não existia diversão melhor que a Família Trapo. Golias era o nosso novo herói.
Quem era mais engraçado? Ele ou comediante americano? Na sala de aula só um achava que o mais divertido era o “Gerry Levis”. Esse colega tinha os seus argumentos, mas para espicaçá-lo botávamos a mão embaixo do sovaco esquerdo e, pressionando-o, fazíamos um barulho parecido com um pum:
Pernachia pra ti, ó... pernachia!
O nosso pernachia era uma mistura do desaforado Bronco, personagem do Golias na Família Trapo, com o Pepino, o personagem de Otelo Zeloni, chefe da família. Por qualquer motivo, a sala de aula virava um coro de pernachias. Na classe, havia também o concurso de quem conseguia fazer a imitação mais legal do Golias. Para imitá-lo, era preciso encompridar o queixo. Isso porque, além do sentimento, o segredo do humor de Golias está concentrado no queixo.
Certa vez passei na rua Augusta, em São Paulo. Lembrei então que o humorista gostava muito de um sapateiro que existira ali. Consta que quando soube que a loja seria fechada para sempre, ele encomendou ao artesão cem pares do mesmo sapato. Genial.
Depois de anos de afastamento, Golias voltou à TV. Sempre que ao trocar de canal eu o flagrava em algum programa, parava para assisti-lo um pouco. E dizia para os meus botões: “Ele nunca mudou. O meu querido Golias continua o mesmo.”

Ronald Golias morreu em 27 de setembro de 2005 de infecção generalizada, aos 76 anos, por volta das 5h30, na cidade de São Paulo.