segunda-feira, 26 de maio de 2008

Django

Márcio Calafiori

Meu pai queria fazer um trato. Era o seguinte: ele decidira comprar uma televisão e por isso, a partir de agora, meu irmão e eu teríamos de esquecer o cinema; não fosse assim, não daria para honrar o compromisso financeiro assumido com a loja. Concordamos na hora! Era 1967 e só então a cidade de Rio Grande começara a receber regularmente, e sem falhas técnicas, a transmissão de TV.
A nossa melhor diversão sempre fora o cinema. Morávamos defronte ao Cine Glória, mas também não perdíamos as sessões do Sete de Setembro e do Carlos Gomes. Íamos ao cinema aos sábados, domingos e feriados. Aos domingos, no Sete de Setembro, havia sessões às 10 da manhã. Numa delas vimos um filme sobre um pianista que morre ao rolar de uma escadaria. Uma de suas mãos sai do túmulo e começa a estrangular os herdeiros que querem vender a sua mansão. Por isso, o título: Os Dedos da Morte. Uma das cenas mais assustadoras é quando a mão assassina toca um piano na penumbra da casa. Meu irmão e eu ficamos apavorados. Uma mão separada do corpo tocando piano!
Mas ir ao cinema, agora, era coisa do passado. Minha mãe fez um bolo ouro-e-prata coberto de creme para comemorarmos a chegada da TV. À noite, nos reunimos na sala para assistir a um filme antigo, sobre um avião pequeno que faz uma aterrissagem forçada na selva. Enquanto o conserta, o piloto anuncia aos passageiros que dois deles não poderão mais seguir viagem; caso contrário, o avião não terá condições de levantar vôo.
O clima fica tenso. Um velho se apodera de um revólver, ameaça o grupo e avisa: ele é que decidirá quem vai ou não embarcar. O piloto consegue consertar o aparelho. Chega o dia da partida. Chega a hora. Está tudo pronto. O suspense é insuportável. Enfim, a decisão: o senhor entrega o revólver ao piloto e diz que ele e a mulher serão os sacrificados, pois já viveram o bastante, enquanto os outros passageiros são jovens ainda. O avião levanta vôo. O casal de velhos se abraça na solidão brutal da selva. Que filme!

No domingo à tarde, porém, a programação da TV estava chata demais. Fui à sacada e olhei a rua. Pô! A fila para a sessão das quatro do Glória dobrava a esquina. Disposto a cumprir o trato, naquele dia eu nem verificara a programação do cinema. Que mancada! Chamei o meu irmão para ver o tamanho da fila. Ele me olhou com uma cara que queria dizer exatamente isso: "Que espécie de trato fizemos com o papai?". Não tive dúvida. Fui ao Glória conferir o filme que atraia aquela multidão: "HOJE, DJANGO!"
Um homem vestido de preto apontava um revólver prateado bem na direção da cara de quem olhava o cartaz. Era um painel imenso, magnífico, que prometia a mais pura emoção. Corri de volta para casa e disse ao meu irmão:
— O filme é DJANGO!... DJANGO!
— Não podemos perder, não podemos perder de jeito nenhum! Mas e o trato?...
Meu pai estava no quarto, lendo. Ouviu o nosso pedido e, em seguida, disse:
— E o nosso acordo?
— ???...
— Dessa vez vou deixar passar, mas aprendam logo: os tratos foram feitos para ser cumpridos.
Conseguimos entrar no cinema bem na hora em que estava começando o trailer do filme do próximo domingo: PECOS, sobre um pistoleiro que primeiro atirava e só depois dizia o nome. Antes de morrer, o bandido balbuciava, cuspindo sangue:
— Qual é o teu nome?...
E o pistoleiro misterioso respondia:
— Meu nome é Pecos!
Então, as luzes do Cine Glória se apagaram. Chegara o grande momento. Django surge na tela puxando um caixão de defunto. O cinema vem abaixo. Gritos e palmas. Lá pelas tantas, ele começa a pôr em ação o plano para vingar o assassinato da esposa. Surpresa: dentro do caixão tem uma metralhadora!
Django começa a montá-la...
Agora, assobiamos, gritamos e o avisamos sobre os homens que estão de tocaia, dispostos a matá-lo. Numa fileira próxima, um guri tenta arrancar a poltrona do lugar. Não consegue. Então ele atira o sapato em direção à tela, tentando acertar um bandido. Enquanto isso, a metralhadora de Django cospe fogo e balas. O Glória treme.
Na saída, digo para o meu irmão:
— Aquele filme de ontem na TV foi legal, mas nem de longe se compara a Django!
— É mesmo, Django é demais, é demais!...
— No domingo que vem...
— O quê?
— ...........
— O quê?!
— ...não vou perder o Pecos; não vou mesmo!
— Mas e o trato com o papai?
— O trato com o papai que se dane!

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