segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O congresso

Márcio Calafiori

"A educação precisa de professoras excitadas... De professoras excitadas?... Estou ficando completamente maluquinha!... Isso é um devaneio... Um devaneio do meu coração!... Estou tão feliz!..."

A vice-diretora tenta estacionar o carro nas imediações do clube onde se realiza o congresso que pretende discutir os novos rumos para o ensino básico. Ela encontra uma vaga. Mas precisa fazer uma manobra eficiente para caber ali.

"...Assim... Isso.... Isso... Viu?... Quem não sabe estacionar um carro? Quem nunca bateu um carro?... Quem nunca teve aborrecimentos por causa de um carro?... Ele!... Ele nunca teve dissabores por causa de um carro, pois não sabe dirigir! Quando ele me disse isso, não acreditei! Eu falei assim, meio perplexa: 'Tu não sabes dirigir?'. E ele me respondeu simplesmente: 'Não, não sei! Nunca me interessei por carros!'. Primeiro, pensei: 'Como pode isso?'. Agora quando entro no carro a primeira coisa que me vem à cabeça é que ele não sabe dirigir... Às vezes fico pensando... Se eu não soubesse dirigir, não teria feito essa cirurgia dolorosa de hérnia de disco que me incomoda até hoje, pois não teria sofrido aquele acidente... E não teria essa cicatriz ridícula no pescoço por causa da cirurgia!... Ele disse que ama a minha cicatriz!... Que quer beijá-la, passar a língua nela até derretê-la... Que lindo!... Mas quando ele me falou isso, não resisti e perguntei se a língua dele fazia milagres.




"Aí ele quis saber por quê. Aí então eu disse que tinha hemorróidas. Eu podia ter dito qualquer outra coisa, mas às vezes ele fica romântico demais... Preciso de atenção, mas um cara romântico demais às vezes me cansa um pouco... Mas só um pouco, pois eu penso tanto nele!... "Alguém teria de começar a conversa sobre sexo, pois já estávamos conversando no MSN há dois meses e ele só ficava dizendo que me adorava... E mais nada... Uma noite, enquanto a gente conversava, fui fazer xixi. Quando voltei, comentei que estava sentindo frio, que estava toda gelada. Nem dei tempo pra ele pensar no que dizer, fui logo dizendo: 'Estou assim porque peguei frio na xexeca'... Depois disso, ele sempre pede pra me ver nua. No começo tive medo... Quando fiquei nua fiz isso sabendo que ele poderia pensar que eu já fizera isso antes... Aliás, ele chegou a insinuar isso, pois perguntou sobre a minha câmera... Eu disse que tinha comprado a câmera recentemente... Fiz questão de dizer também que nunca mais iria ficar nua, pois não queria que o nosso reencontro, depois de trinta anos, se resumisse a isso...
"Mas um dia desses não resisti... Quando já íamos sair do MSN eu disse pra ele não ir embora ainda, pois eu tinha uma surpresa... Eram quase duas da manhã. Fui ao banheiro, tirei a roupa, fiquei só de calcinha e soutiã, coloquei o roupão por cima e voltei para o computador. Estava frio demais, mas eu queria ficar nua de novo... Será que ele quer me ver assim só pela web ou quer me ver de verdade, ao vivo?... Ah, sei lá..."

É sexta-feira e a vice-diretora chega ao congresso bem na hora do coffee break, o último antes do encerramento do evento. Os participantes conversam em grupos, animados. A expressão coffee break a irrita...

"Um congresso sobre os rumos da educação, que se pretenda sério, deveria abolir essa expressão, 'coffe break'. Inclusive porque estamos todos aqui em defesa de crianças que muitas vezes nem tomam café em casa, pois dependem da escola pra tudo!... Daqui a pouco vou falar e queria tanto que ele me ouvisse... Queria tanto que ele prestasse atenção em mim... Esse congresso é muito importante! As crianças estão cada vez mais desorientadas e os adultos... cada vez mais irresponsáveis! Essa é a verdade! O meu discurso não terá essa questão da cultura audiovisual e tecnológica/digital versus a cultura letrada! A verdade é que os adultos ficaram irresponsáveis, ora!... E superficiais... O repertório de um adulto hoje equivale ao de um adolescente... É isso!.... Acho que estamos retornando à Idade-Média...
Como eu queria que ele estivesse aqui!... Quando eu tinha 12 anos, e ele fazia poesia para mim, ele sempre me perguntava se eu tinha entendido o que ele havia escrito. Na época, eu queria dizer pra ele que eu só tinha 12 anos e, às vezes, não entendia nada do que ele escrevia... Mas eu achava lindo... De manhã, quando eu ia pra escola, corria pra ler o que ele tinha me deixado na caixa de correspondência... Ele pensava mesmo em mim?... Me adorava assim, daquele jeito?... Ah, como eu queria que ele estivesse aqui!... Eu ia localizá-lo na platéia e ler a minha intervenção olhando pra ele. E então ele iria entender o quanto tudo o que me escreveu teve influência em mim... Pois nunca esqueci aquilo, de acordar de manhã cedo e encontrar algo escrito pra mim, só pra mim, só pra mim... Só meu...

"A nossa história é tão bonita!... Mas acho tão triste também... Esses dias chorei tanto... Quando escrevi pra ele nem sabia se iria mesmo reencontrá-lo. Mas quando li a resposta dele ao meu e-mail tive a certeza de que era ele mesmo, pois só ele escreveria assim: 'Quando li a tua mensagem quase caí da cadeira, pois o meu coração recebeu um impacto sonoro e retumbante!'..."

Agora, os participantes do congresso começam a voltar para o salão de conferências.
No palco, a mesa é composta pelo presidente do evento, pela secretária-executiva e pela vice-diretora, que fará o discurso como convidada. Ela observa a platéia. Quantos ali estariam vivendo uma história de amor? Não as histórias adormecidas de amor, mas uma história de amor como a dela, que conseguira reencontrar o primeiro namorado, depois de trinta anos, e se apaixonar de novo?...

“'Não quero que tu penses que eu sou uma safada, mas tu me ensinaste a beijar de língua, lembra?'”. Eu disse isso pra ele... E ele se lembrava de tudo... Depois de trinta anos!... Eu adorei isso... Adorei... Como ele podia se lembrar de tanta coisa que eu mesma nem me lembrava mais?... Será que o nosso reencontro tem mesmo a ver com o destino? Não sei se acredito em destino, mas todas as minhas amigas falam em destino! Bem, seja o que for, é a vida!... Mas até agora, depois de quase cinco meses, ele ainda não veio me ver. Mas disse que virá... Eu sinto que ele está dizendo a verdade, que ele virá, que ele me ama de verdade... Eu sinto isso...
Ele disse que não pode vir assim, de uma hora pra outra... Mas ele precisa vir logoooooooooo!... No fundo, as minhas amigas pensam que sou ingênua. A Alice já até me disse: 'Não deixem pra se encontrar quando vocês estiverem velhos e sem vontade alguma'. Sábia Alice..."

Na platéia, o clima do coffe break ainda não se dissipou. O presidente anuncia que fará as considerações finais sobre o congresso depois da intervenção da vice-diretora, representante das escolas municipais:
— Com a palavra, a professora...
— Boa-tarde... O tema da minha análise sobre educação é muito inspirada nas idéias e conclusões de Neil Postman... Num ensaio de sua autoria: O fim da educação — Redefinindo o valor da escola...
Coloca os óculos de leitura e, olhando para o público, pega o discurso. Pede desculpas, mas terá de lê-lo. E começa: “Fecho os olhos pra não ver passar o tempo/Sinto falta de você”...

Tenta se recompor:

— Por favor, me desculpem... Peguei um outro papel por engano. Estava junto com o discurso... Troquei de óculos ontem... Deve ser por isso... Estou me acostumando ainda... Na verdade, comecei a ler uma letra de música... Gozado, nem percebi... Estava na bolsa... É uma música que o Roberto canta... Adoro essa música... É por causa de um ex-namorado, que eu não via há trinta anos, e agora estamos prestes a nos reencontrar...
— Acho que todos vão concordar comigo — que a senhora leia a letra dessa música até o fim — diz o presidente do Congresso. — Por favor...
— Vocês querem mesmo que eu leia?
— Sim, por favor...
Ao concluir a leitura e ser muito aplaudida, a vice-diretora agradece e diz:
— A exposição correta é essa... — De acordo com Neil Postman...

Para Adriana

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