segunda-feira, 28 de abril de 2008

Sobre cocô de cachorro e galos

Márcio Calafiori

No bairro onde moro, em Santos, esbarro em cocô de cachorro de manhã, de tarde e de noite. À noite, é comum ver moradores que descem dos prédios e, pachorrentos, aguardam, enquanto os animais defecam bem em cima da calçada; de preferência, bem ali no meio da calçada, onde daqui a pouco você vai pisar. Não tive ainda a oportunidade de presenciar alguém recolher o cocô, mas sei que existe gente que limpa o que os bichos sujam. Mas esta não é a regra.


Pisar em cocô está entre as dez coisas mais porcas, irritantes e lastimáveis do dia-a-dia. Isso me faz lembrar da minha mãe. Ela esfregava o focinho dos cachorros no chão, até que aprendessem o lugar certo de fazer xixi e cocô. Se fosse hoje, a minha mãe seria denunciada à sociedade protetora dos animais. Ocorre que quando tivemos bichos em casa, e lá se vão mais de quarenta anos, o mundo era diferente. Gente era gente e bicho era bicho. E gente e bicho éramos todos educados.

Hoje, os animais domésticos cumprem uma função social e psicológica importante. Servem de companhia para a criança que não pôde ter um irmão, para quem vive só ou para o casal de idosos, cujos filhos e netos moram nos Estados Unidos ou no Japão, exilados pela falta de oportunidades no Brasil. Diante disso, os bichos são mimados como bebês: têm plano de saúde e usam casaquinhos, lacinhos, sapatinhos e tudo o mais o que este importante membro da família merece. Mas é bom lembrar: os pet shops vendem sacos plásticos adequados para que o dono recolha a porcaria da calçada.

Comecei falando sobre cocô de cachorro, mas na verdade quero contar o seguinte: moro em frente a uma quitanda. O dono da quitanda, um japonês, tem ali um quintal imenso e resolveu criar dois galos e três galinhas. Às quatro da manhã, os galos cantavam. O poeta diria: “Os galos tecem a manhã”. Gosto de ouvi-los. É como se algo primitivo viesse visitar-me na paisagem urbana e concreta. Gostava também da árvore na casa ao lado do meu prédio, cujos galhos quase entravam em meu quarto. Alguém do prédio deve ter reclamado e a árvore foi cortada. Nunca mais ouvi os passarinhos que ali pousavam.


Recentemente, fizeram uma reclamação à Ouvidoria Pública e um fiscal da saúde pública visitou a quitanda. O japonês foi obrigado a se livrar dos galos. Agora, pelo menos na minha rua, eles não cantam mais. Mas o bairro que conseguiu se livrar da sinfonia silvestre continua envenenado por cocô de cachorro.

Publicado no jornal Boqueirão em 29 de setembro de 2007.

De olhos bem abertos

Márcio Calafiori

Recentemente, uma rádio de São Paulo fez uma enquete com os ouvintes para saber se dinheiro traz felicidade. Não opinei, mas inspirado pela pesquisa quero contar o seguinte: o meu pai tem 78 anos. A lembrança mais persistente que tenho dele é a sua relação com a leitura. Ele adora ler. Lê todos os dias e, de seis anos para cá, desde que ficou viúvo, lê da uma às seis da manhã. “Não há nada que me distraia mais do que a leitura”, costuma dizer-me.


Em 2004 e 2005, ele foi operado da catarata e da miopia numa clínica especializada de Santos. Primeiro de um olho e, noventa dias depois, do outro. Mas continuou com o astigmatismo. No ano passado, começou a ter problemas sérios de visão. Consultou um oftalmologista e obteve uma nova receita de óculos. No entanto, começou a enxergar cada vez pior de longe. Em março, passou a enxergar mal também de perto. Em agosto, já não conseguia mais ler. Tentou marcar uma consulta na clínica onde fora operado. Consulta? Só para dezembro. Mandei que insistisse. Conseguiu, enfim, ser atendido no fim de setembro.

O médico que o examinou disse que iria tentar melhorar a sua visão de perto, mas com a de longe não havia mais o quê fazer. Em seguida, se pôs a filosofar: “A idade é mesmo assim. É preciso ter paciência, saber se conformar”. A receita nova para os óculos de perto não surtiu efeito. Ficar sem a leitura deixou meu pai deprimido. Ao conversar com um colega sobre o problema, este lhe contou que tinha um amigo oftalmologista em São Paulo, profissional competente. Perguntou se meu pai podia pagar R$ 350 pela consulta. Ele respondeu que sim!

O médico da Capital deu-lhe o diagnóstico: o seu problema de visão era muito fácil de resolver com a aplicação de laser. Além da consulta de R$ 350, o laser custou R$ 1 mil (R$ 500 para cada olho, preço à vista). Como fora levado por um amigo, meu pai teve direito a um desconto. À noite, já estava lendo. Quinze dias depois, voltou a São Paulo. Foi quando reclamou da visão de longe. O oftalmologista confrontou a antiga receita com as lentes que ele usava. Havia uma diferença no eixo do olho direito. O eixo correto era 160. A receita marcava 60. As lentes foram trocadas e meu pai voltou a enxergar bem de longe.


O laser é um procedimento caro. No caso do meu pai, das duas uma: ou o médico de Santos não quis fazer a aplicação porque teria de cumprir a tabela de preços do convênio (e nesse caso que se dane o paciente) ou trata-se de um charlatão. Em qualquer das alternativas estamos diante de um canalha. Meu pai costuma ler um jornal por dia e um livro por semana, às vezes dois; acaba de aprender a usar o DVD e, no momento, se aventura no computador. Ter o dinheiro para o laser e a consulta em São Paulo lhe proporcionou felicidade e bem-estar. E uma lição: ele agora está de olhos bem abertos.

Publicado no jornal Boqueirão em 16 de fevereiro de 2008.