terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Não chore mais

Márcio Calafiori

“O bar é um exercício de solidão”.
Luis Buñuel

O cenário é um teatro-bar, com música ambiente.
José Luiz e Marcelo já estão acomodados em uma mesa, mas não foram atendidos ainda. O bar começa a encher. O garçom chega.

Garçom — Boa-noite. (Estende os cardápios). Já sabem o que vão pedir ou preferem consultar a nossa carta?

José Luiz — Quero vodca com menta. Bastante gelo.

Marcelo — Eu quero um dry martini.

Garçom — Pois não...

O garçom faz meia-volta, mas Marcelo o chama de volta.

Marcelo — Por favor, quero o gelo do meu dry martini totalmente congelado, vinte graus abaixo de zero. Não quero que o gelo fique soltando água na minha bebida. Não existe nada mais sem juízo do que um dry martini aguado.

Garçom — Sim, senhor.

O garçom consulta o barman e volta à mesa.

Garçom — Infelizmente, o gelo não está na temperatura adequada, senhor.

Marcelo — (dirigindo-se ao garçom, indignado) — Diga-me sinceramente: que espécie de bar é esse?

Garçom — (polido) — É porque antes do senhor nenhum cliente havia pedido o gelo nessa temperatura. (Contemporizando) — Aliás, a temperatura do gelo que o senhor aprecia é excelente para um drinque! A casa vai providenciar isso em breve! Sem dúvida!

Marcelo — (relaxando, mas pomposo) — Espero que a casa não deixe a decadência cultural chegar aos drinques!

Garçom — Perfeitamente, senhor.

Marcelo — Me traz então um gim-tônica. Dois terços de gim e um de tônica. Com limão-bergamota! E agora tanto faz a temperatura do gelo. O gim-tônica não tem a mesma classe do dry martini.

O garçom balança a cabeça, concordando.

Garçom — Sim, senhor.

As bebidas chegam. Na mesa, impõe-se um contraste luminoso entre o verde da vodca com menta e o gim-tônica. José Luiz e Marcelo brindam e bebem. Ao olhar aleatoriamente em direção à entrada do bar, o primeiro baixa rápido a cabeça e diz:

José Luiz — Não olha agora. Não olha!... Não olha!... A Balbina está entrando.

Marcelo — Quem é Bal-bi-na?

José Luiz — (ainda de cabeça baixa, tentando agir como um avestruz) — É essa que acabou de entrar, aquela de quem eu já te falei uma vez. Essa mulher está apaixonada por mim. Só que ela é louca! É louca!

Balbina tem seios rígidos e pontudos; cintura definida; e pernas longas. Veste saia e blusa e sapatos de salto alto. Marcelo não consegue tirar os olhos dela. Balbina movimenta-se em direção à mesa dos amigos.

Marcelo — (em êxtase) — Que mulher! Ela está mesmo apaixonada por você? Não acredito, não acredito!

José Luiz — (ainda de cabeça baixa, preocupado) — Ela já me descobriu? Está vindo para cá?

Marcelo — Agora é tarde! Como é que você vai querer se esconder atrás de um drinque verde?...

Balbina — (falando alto, feliz) — Não acredito! José Luiz! Não acredito! (Agora ele levanta a cabeça.) Você aqui? Eu vinha rezando para te encontrar. Sabe o que acabei de pensar antes de entrar no bar? Pensei assim: “Se o José Luiz estiver aqui é porque eu vou me casar com ele”.

José Luiz — (resignado) — Balbina, este é o Marcelo.

Balbina olha para Marcelo, mas é como se ele não estivesse ali.

Balbina — (dirigindo-se a José Luiz )— Posso sentar?

José Luiz — Estamos tratando de negócios!

Balbina — Nesse caso, com licença! Vou ficar ali no balcão, até você mudar de idéia.

Balbina vai para o balcão do bar, acende um cigarro e diz:

Balbina — José Luiz, que troço verde é esse que você está bebendo?

José Luiz — (resignado) — É vodca com menta.

Balbina — (dirigindo-se ao barman) — O mesmo pra mim!

Na mesa, José Luiz e Marcelo confabulam.

Marcelo — Quando você me apresentou a ela, fiquei mudo... Eu nunca sei o quê dizer diante de uma mulher bonita. E você se dá ao luxo de dispensá-la!...

José Luiz — ...É que esse tipo de mulher me deixa tenso. A Balbina começou a me amar de repente, só porque consegui decifrar um problema de câmbio lá no banco. Depois que resolvi o problema, que nem era tão complicado, ela olhou bem pra mim e disse: “Eu te amo!”.

Marcelo — Que inveja, que inveja! (Sinceramente desconsolado) — Eu nunca fui amado por uma linda mulher. Nunca!...


No balcão do bar, Balbina manda brasa na vodca com menta.

Balbina — (a voz de bêbada é meio engraçada, mas sentimental) — Eu vou aí na tua mesa, José Luiz. Não aguento mais a tua indiferença. A tua indiferença está secando os meus fluidos!

Ela vai para a mesa dos amigos e diz para o garçom:

Balbina — Mais uma vodca... Mas agora só com gelo. Essa bebida com menta tem gosto de pasta de dente!

José Luiz (ríspido) — Balbina, chega! Para de beber!

Balbina — (bêbada sentimental) — Eu bebo quanto quiser! Você não manda em mim! Se você me amasse, me você me quisesse, eu deixava você mandar em mim...

Imparcial, o garçom deposita a vodca na mesa. Balbina bebe rápido.

Balbina — (com voz de bêbada) — Eu te amo, José Luiz! Eu te amo!

Em seguida cai da cadeira, talvez desmaiada. José Luiz e Marcelo estão atordoados. Ambos se ajoelham ao lado dela.

José Luiz — (incrédulo) — Não acredito! O que essa louca fez?

Marcelo — (tirando o blazer e em seguida, no chão, segurando a cabeça de Balbina) — O Zé Luiz é um insensível. Ele não sabe te amar. (Em seguida, diz para José Luiz) — Traz um copo d’água, rápido!

José Luiz volta com o copo d´água.

Marcelo — (examinando atentamente o conteúdo do copo, enquanto a cabeça de Balbina está apoiada entre suas pernas) — Que água é essa?

José Luiz — (impaciente) — Como é que eu vou saber? E que diferença faz? Joga isso logo na cara dela!

Marcelo — (dispensando a água) ... Volta lá e pede um copo com gelo.

José Luiz volta com o copo cheio de gelo.

Marcelo — Me dá o gelo...

Ele começa a passá-lo no rosto de Balbina. Ela não reage. Marcelo então esfrega o gelo nos seios dela, por dentro da blusa.

José Luiz — (incrédulo) — Mas o que é isso?

Marcelo — (sem tirar as mãos dos seios de Balbina) — Isso o quê?

José Luiz — Você está se aproveitando!...

Marcelo pega outra pedra de gelo e passa entre as pernas de Balbina.

José Luiz — (veemente) — Isso é antiético! Já passou dos limites!

O gerente — Cavalheiros! Este bar consta no Guia Quatro Rodas justamente por cultivar um clima cultural erótico de muito respeito!

Marcelo não dá a mínima para o gerente e muito menos para José Luiz. Passa o gelo entre as pernas de Balbina, enquanto diz:

Marcelo — Acorda, meu amor!

Com o gelo entre as pernas, Balbina começa a se reanimar:

Balbina — Eu te amo, José Luiz. Eu te amo!

O gerente — Levem-na daqui! Por favor!

Agora, os amigos carregam Balbina, segurando-a pelos braços e pelas pernas. Ao ser transportada pelo meio das mesas e dos clientes, ela diz:

Balbina — Eu te amo, José Luiz, eu te amo! (E chora, muito sentida).

Marcelo — Não chore mais!... Agora eu estou aqui... Esquece o Zé Luiz!...

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Noite de Natal

Márcio Calafiori


— Mamãe, como o Papai Noel vai entrar aqui? A nossa casa não tem chaminé!

— Ah, ele sempre dá um jeito. Não te preocupes...

No quarto morno e compacto de certeza, o guri desperta:

Na janela, a noite cintilante...

(Pôxa, pelo jeito o Papai Noel já estivera ali

e mais uma vez não conseguiu flagrá-lo...

Mas é verdade:

se o visse entrando pela chaminé

— a chaminé invisível — teria muito medo).

Saudade

Márcio Calafiori


Quando minha mãe ia embora,

o meu choro explodia,

vindo de uma essência incontrolável.


Depois, tudo me distraia:

os animais pastando,

o espinho que percorria a carne,

a casinha do joão-de-barro,

a laranja-de-umbigo,

a bosta das vacas,

os chapéus-de-cobra,

a casa das abelhas,

o cemitério,

a estação do trem,

a sanga,

o ônibus a caminho de Jaguarão,

as tardes mornas em que eu pulava a janela

para furar os bolos de Maria Beiró.


Eu corria atrás de seu Belinho,

implorando para que não matasse o porco

O porco era meu amigo!

Mas seu Belinho metia a faca:

o porco gritava me dizendo adeus.


Às vezes, a chuva me impedia de sair

ou então só quando a geada derretesse.

No alto do cerro morava uma velha...

Negra Rosa botava a chaleira para o mate

Vovó batia as claras para o merengue

Tia Mimosa conversava com o rádio

O gaúcho passava a cavalo...



À noite, na saleta do casarão,

Eu ouvia a voz da minha mãe:

vinha como de um balde atirado à cacimba...

Na parede, o lampião iluminava os retratos

Homens e mulheres de olhares antigos,

Todos mortos!

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O congresso

Márcio Calafiori

"A educação precisa de professoras excitadas... De professoras excitadas?... Estou ficando completamente maluquinha!... Isso é um devaneio... Um devaneio do meu coração!... Estou tão feliz!..."

A vice-diretora tenta estacionar o carro nas imediações do clube onde se realiza o congresso que pretende discutir os novos rumos para o ensino básico. Ela encontra uma vaga. Mas precisa fazer uma manobra eficiente para caber ali.

"...Assim... Isso.... Isso... Viu?... Quem não sabe estacionar um carro? Quem nunca bateu um carro?... Quem nunca teve aborrecimentos por causa de um carro?... Ele!... Ele nunca teve dissabores por causa de um carro, pois não sabe dirigir! Quando ele me disse isso, não acreditei! Eu falei assim, meio perplexa: 'Tu não sabes dirigir?'. E ele me respondeu simplesmente: 'Não, não sei! Nunca me interessei por carros!'. Primeiro, pensei: 'Como pode isso?'. Agora quando entro no carro a primeira coisa que me vem à cabeça é que ele não sabe dirigir... Às vezes fico pensando... Se eu não soubesse dirigir, não teria feito essa cirurgia dolorosa de hérnia de disco que me incomoda até hoje, pois não teria sofrido aquele acidente... E não teria essa cicatriz ridícula no pescoço por causa da cirurgia!... Ele disse que ama a minha cicatriz!... Que quer beijá-la, passar a língua nela até derretê-la... Que lindo!... Mas quando ele me falou isso, não resisti e perguntei se a língua dele fazia milagres.




"Aí ele quis saber por quê. Aí então eu disse que tinha hemorróidas. Eu podia ter dito qualquer outra coisa, mas às vezes ele fica romântico demais... Preciso de atenção, mas um cara romântico demais às vezes me cansa um pouco... Mas só um pouco, pois eu penso tanto nele!... "Alguém teria de começar a conversa sobre sexo, pois já estávamos conversando no MSN há dois meses e ele só ficava dizendo que me adorava... E mais nada... Uma noite, enquanto a gente conversava, fui fazer xixi. Quando voltei, comentei que estava sentindo frio, que estava toda gelada. Nem dei tempo pra ele pensar no que dizer, fui logo dizendo: 'Estou assim porque peguei frio na xexeca'... Depois disso, ele sempre pede pra me ver nua. No começo tive medo... Quando fiquei nua fiz isso sabendo que ele poderia pensar que eu já fizera isso antes... Aliás, ele chegou a insinuar isso, pois perguntou sobre a minha câmera... Eu disse que tinha comprado a câmera recentemente... Fiz questão de dizer também que nunca mais iria ficar nua, pois não queria que o nosso reencontro, depois de trinta anos, se resumisse a isso...
"Mas um dia desses não resisti... Quando já íamos sair do MSN eu disse pra ele não ir embora ainda, pois eu tinha uma surpresa... Eram quase duas da manhã. Fui ao banheiro, tirei a roupa, fiquei só de calcinha e soutiã, coloquei o roupão por cima e voltei para o computador. Estava frio demais, mas eu queria ficar nua de novo... Será que ele quer me ver assim só pela web ou quer me ver de verdade, ao vivo?... Ah, sei lá..."

É sexta-feira e a vice-diretora chega ao congresso bem na hora do coffee break, o último antes do encerramento do evento. Os participantes conversam em grupos, animados. A expressão coffee break a irrita...

"Um congresso sobre os rumos da educação, que se pretenda sério, deveria abolir essa expressão, 'coffe break'. Inclusive porque estamos todos aqui em defesa de crianças que muitas vezes nem tomam café em casa, pois dependem da escola pra tudo!... Daqui a pouco vou falar e queria tanto que ele me ouvisse... Queria tanto que ele prestasse atenção em mim... Esse congresso é muito importante! As crianças estão cada vez mais desorientadas e os adultos... cada vez mais irresponsáveis! Essa é a verdade! O meu discurso não terá essa questão da cultura audiovisual e tecnológica/digital versus a cultura letrada! A verdade é que os adultos ficaram irresponsáveis, ora!... E superficiais... O repertório de um adulto hoje equivale ao de um adolescente... É isso!.... Acho que estamos retornando à Idade-Média...
Como eu queria que ele estivesse aqui!... Quando eu tinha 12 anos, e ele fazia poesia para mim, ele sempre me perguntava se eu tinha entendido o que ele havia escrito. Na época, eu queria dizer pra ele que eu só tinha 12 anos e, às vezes, não entendia nada do que ele escrevia... Mas eu achava lindo... De manhã, quando eu ia pra escola, corria pra ler o que ele tinha me deixado na caixa de correspondência... Ele pensava mesmo em mim?... Me adorava assim, daquele jeito?... Ah, como eu queria que ele estivesse aqui!... Eu ia localizá-lo na platéia e ler a minha intervenção olhando pra ele. E então ele iria entender o quanto tudo o que me escreveu teve influência em mim... Pois nunca esqueci aquilo, de acordar de manhã cedo e encontrar algo escrito pra mim, só pra mim, só pra mim... Só meu...

"A nossa história é tão bonita!... Mas acho tão triste também... Esses dias chorei tanto... Quando escrevi pra ele nem sabia se iria mesmo reencontrá-lo. Mas quando li a resposta dele ao meu e-mail tive a certeza de que era ele mesmo, pois só ele escreveria assim: 'Quando li a tua mensagem quase caí da cadeira, pois o meu coração recebeu um impacto sonoro e retumbante!'..."

Agora, os participantes do congresso começam a voltar para o salão de conferências.
No palco, a mesa é composta pelo presidente do evento, pela secretária-executiva e pela vice-diretora, que fará o discurso como convidada. Ela observa a platéia. Quantos ali estariam vivendo uma história de amor? Não as histórias adormecidas de amor, mas uma história de amor como a dela, que conseguira reencontrar o primeiro namorado, depois de trinta anos, e se apaixonar de novo?...

“'Não quero que tu penses que eu sou uma safada, mas tu me ensinaste a beijar de língua, lembra?'”. Eu disse isso pra ele... E ele se lembrava de tudo... Depois de trinta anos!... Eu adorei isso... Adorei... Como ele podia se lembrar de tanta coisa que eu mesma nem me lembrava mais?... Será que o nosso reencontro tem mesmo a ver com o destino? Não sei se acredito em destino, mas todas as minhas amigas falam em destino! Bem, seja o que for, é a vida!... Mas até agora, depois de quase cinco meses, ele ainda não veio me ver. Mas disse que virá... Eu sinto que ele está dizendo a verdade, que ele virá, que ele me ama de verdade... Eu sinto isso...
Ele disse que não pode vir assim, de uma hora pra outra... Mas ele precisa vir logoooooooooo!... No fundo, as minhas amigas pensam que sou ingênua. A Alice já até me disse: 'Não deixem pra se encontrar quando vocês estiverem velhos e sem vontade alguma'. Sábia Alice..."

Na platéia, o clima do coffe break ainda não se dissipou. O presidente anuncia que fará as considerações finais sobre o congresso depois da intervenção da vice-diretora, representante das escolas municipais:
— Com a palavra, a professora...
— Boa-tarde... O tema da minha análise sobre educação é muito inspirada nas idéias e conclusões de Neil Postman... Num ensaio de sua autoria: O fim da educação — Redefinindo o valor da escola...
Coloca os óculos de leitura e, olhando para o público, pega o discurso. Pede desculpas, mas terá de lê-lo. E começa: “Fecho os olhos pra não ver passar o tempo/Sinto falta de você”...

Tenta se recompor:

— Por favor, me desculpem... Peguei um outro papel por engano. Estava junto com o discurso... Troquei de óculos ontem... Deve ser por isso... Estou me acostumando ainda... Na verdade, comecei a ler uma letra de música... Gozado, nem percebi... Estava na bolsa... É uma música que o Roberto canta... Adoro essa música... É por causa de um ex-namorado, que eu não via há trinta anos, e agora estamos prestes a nos reencontrar...
— Acho que todos vão concordar comigo — que a senhora leia a letra dessa música até o fim — diz o presidente do Congresso. — Por favor...
— Vocês querem mesmo que eu leia?
— Sim, por favor...
Ao concluir a leitura e ser muito aplaudida, a vice-diretora agradece e diz:
— A exposição correta é essa... — De acordo com Neil Postman...

Para Adriana

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

No Ritz

Márcio Calafiori

O encontro no hotel fora combinado às nove. Já passava das dez. O atraso começou a exasperá-lo, a deixá-lo em dúvida. Tinha certeza de ter dito Ritz, mas se ela, por engano, entendera Rex? Foi à recepção:
— Este hotel é mesmo o Ritz?
— Como assim, cavalheiro?
— Em Porto Alegre não existe outro Hotel Ritz?
— Pode ficar tranquilo: este é o Hotel Ritz, o tradicional Ritz!
Meses antes, encontrara na caixa de correspondência uma mensagem: “Oi, bom-dia! Morei em Brasília quando adolescente, onde conheci uma pessoa com o seu nome. Ao procurá-lo, encontrei-o. Será que você foi o meu primeiro namorado? Por favor, me responda. Obrigada!”. Ele respondeu: “Quando li essa mensagem quase caí da cadeira, pois o meu coração recebeu um impacto sonoro e retumbante! Sim, sou eu mesmo. Lembro de que eu tinha 19 anos e você 11".
Não existem mais hotéis como o Ritz: os tapetes vinho, os quadros de caça à raposa, as poltronas e os sofás revestidos de couro marrom escuro, o bar silencioso com a iluminação verde, o elevador manual e os hospedes que entram e saem dizendo apenas o necessário. Os homens se sentam no saguão, folheiam um pouco a Zero Hora e pedem licença antes de acender o charuto. As mulheres remetem a lençóis alvíssimos.
O funcionário da recepção era o mesmo senhor calvo, atarracado e de nariz chato, como um lutador de boxe, a quem já interpelara.
— Por favor...
— Um momento...
O homem foi ao escritório e voltou fumando um charuto:
— Espero que não se incomode...
— Não se preocupe...
— Pois não!... Em que posso servi-lo?...
— Fiquei de encontrar aqui uma mulher que não vejo há trinta anos, mas acho que ela não vem mais...
— Ela tem celular?
— Tem!
— E por que o senhor não liga?
— Só dá caixa postal...
— Então vamos tentar de novo. Qual é o número?
O charuto soltava uma fumaça azulada.
— É, está dando caixa postal... — confirmou o homem.
— Combinamos às nove, mas agora... Acho que ela mudou de ideia. Só pode ser isso!
— Não!
— Como o senhor sabe?
— Existem poucas profissões no mundo propícias ao conhecimento quase íntimo do ser humano. O de recepcionista de hotel é uma delas. Quando cheguei aqui me surpreendia muito. Às vezes, ainda me surpreendo... O senhor não é o primeiro a marcar um encontro aqui, no Ritz.
— É?...
— A mulher que o senhor está esperando virá!
— Mas o senhor não a conhece!
— Então me diga o senhor mesmo. Como ela é?
A fumaça azul e cinza do charuto subia, formando um céu compacto.
— Ah, ela é adorável... É espontânea!...
— Não precisa dizer mais nada. Vá ao bar e peça um conhaque e espere-a calmamente. As mulheres adoram fazer surpresas.
— O hotel vende charutos?
— Vende, sim!
— Pois o senhor merece um. Ponha na minha conta!

No bar, ele preferiu o balcão. Mirou o conhaque contra a luz verde... Desde março, quando recebera a mensagem, passou a amá-la minuciosamente pela câmera. Adorava quando ela ria e quando ficava séria; adorava quando ela prendia os cabelos na nuca, como se estivesse vindo para a cama; adorava o que ela dizia. Por exemplo... “Parei de fumar não por causa da saúde, mas porque gosto de sentir os narizes me cheirando. O cigarro estava apagando a minha fragrância!”.
Pediu mais um conhaque e, ao mirá-lo contra a luz verde, viu-a através do tom esmeralda e ouro:
— Desculpa o atraso — ela disse.
— Atraso?... Sabe há quanto tempo estou te esperando?...
— Que horas são?
— É 1h15.
— Pois então?
— Pois então o quê?...
— 1h15 foi a hora em que te mandei o e-mail em março, perguntando se você era você mesmo. Eu quis chegar exatamente à mesma hora...

Para Adriana

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Palavras

Márcio Calafiori

Meu pai costuma dizer palavras que ninguém diz. Uma delas é inapetente. Ouvi-a pela primeira um dia na hora do almoço. Foi quando minha mãe ordenou que eu não saísse da mesa sem antes comer tudo.
— Se ele está inapetente, não o obrigue a comer! — disse meu pai.
— Ele precisa se alimentar!
— O alimento só faz bem quando apetece.
— Nunca ouvi falar disso. Caso contrário, não obrigariam os doentes a comer — ela insistiu.
Aí então o meu pai encerrou a conversa, dizendo a ela:
— Abstenha-se!
E logo em seguida, dirigindo-se a mim:
— Pode se retirar da mesa. Mas não te ponhas qual um corcel fogoso!

Gosto de ler em voz alta os comentários que ele escreve em meu caderno da escola quando a professora propõe o debate de algum tema em sala de aula. Certa vez o tema proposto foi: “Devemos ou não dar esmola?”.
Levei-lhe a questão e meu pai então ditou-me o seguinte texto como resposta: “O óbolo humilha quem recebe e avilta o caráter de quem dá”.
Li isso na classe em voz alta, orgulhoso.

Ontem eu estava no banheiro e minha tia, em cuja casa estou passando as férias, bateu na porta:
— Vais demorar muito?
— Não, tia, tô acabando de defecar!
— O quê?...
— Tô acabando de defecar!...
Quando saí do banheiro, ela me disse:
— Enquanto estiveres aqui em casa fala como gente, tá?

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

46.


Márcio Calafiori

Comprou o apartamento financiado e agora briga na Justiça com o banco por causa das prestações, superiores ao reajuste do salário de militar reformado. Enquanto a mulher cozinha, ele bebe o vinho tinto de garrafão. De repente:
— Já sei!... Vou pesquisar uma substância que me deixe como morto. Aí então tu apresentas o atestado de óbito ao banco e quita-se a dívida. Depois eu ressuscito, levanto do túmulo!...
A mulher:
— Gostei do plano... Menos da parte em que tu ressuscitas.