segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Palavras

Márcio Calafiori

Meu pai costuma dizer palavras que ninguém diz. Uma delas é inapetente. Ouvi-a pela primeira um dia na hora do almoço. Foi quando minha mãe ordenou que eu não saísse da mesa sem antes comer tudo.
— Se ele está inapetente, não o obrigue a comer! — disse meu pai.
— Ele precisa se alimentar!
— O alimento só faz bem quando apetece.
— Nunca ouvi falar disso. Caso contrário, não obrigariam os doentes a comer — ela insistiu.
Aí então o meu pai encerrou a conversa, dizendo a ela:
— Abstenha-se!
E logo em seguida, dirigindo-se a mim:
— Pode se retirar da mesa. Mas não te ponhas qual um corcel fogoso!

Gosto de ler em voz alta os comentários que ele escreve em meu caderno da escola quando a professora propõe o debate de algum tema em sala de aula. Certa vez o tema proposto foi: “Devemos ou não dar esmola?”.
Levei-lhe a questão e meu pai então ditou-me o seguinte texto como resposta: “O óbolo humilha quem recebe e avilta o caráter de quem dá”.
Li isso na classe em voz alta, orgulhoso.

Ontem eu estava no banheiro e minha tia, em cuja casa estou passando as férias, bateu na porta:
— Vais demorar muito?
— Não, tia, tô acabando de defecar!
— O quê?...
— Tô acabando de defecar!...
Quando saí do banheiro, ela me disse:
— Enquanto estiveres aqui em casa fala como gente, tá?

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

46.


Márcio Calafiori

Comprou o apartamento financiado e agora briga na Justiça com o banco por causa das prestações, superiores ao reajuste do salário de militar reformado. Enquanto a mulher cozinha, ele bebe o vinho tinto de garrafão. De repente:
— Já sei!... Vou pesquisar uma substância que me deixe como morto. Aí então tu apresentas o atestado de óbito ao banco e quita-se a dívida. Depois eu ressuscito, levanto do túmulo!...
A mulher:
— Gostei do plano... Menos da parte em que tu ressuscitas.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

5.

Márcio Calafiori

No ônibus ele senta ao lado da moça:
— Com licença...
— Pois não...
— Sabe?... Faz três anos e 11 dias que a minha mulher morreu. Estou indo ao cemitério pra conversar com ela. Vou lá todos os dias. Sabe?... Fico com pena dos outros mortos. Eles não têm ninguém pra conversar com eles.